João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

João Pereira Coutinho

Problemas cabeludos

Sonho em abrir um museu com todos os horrores dos meus natais passados

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Natal. Presentes. Horrores. Três palavras, uma tradição. No caso, a minha. Não me queixo. Todos os anos, quando o Natal desce sobre nós, recebo presentes que não lembram ao diabo.

Corrijo. Talvez só o Diabo se lembrasse de os oferecer. O pior de todos? Hesito: um anão de porcelana para enfeitar o jardim (que não tenho) ou um conjunto de escovas para limpar o vaso sanitário?

O anão, definitivamente. Mas guardo tudo. Primeiro, porque não tenho coragem de premiar alguém com as dádivas que recuso. Depois, porque sonho um dia abrir um museu com todos os horrores dos meus natais passados. Quem sabe? Posso fazer algum dinheiro, a título de indenização.

Nesse ano a tradição se cumpriu. Mas sinto que subi a um novo patamar de bizarrice: um familiar, preocupado com a minha calvície, decidiu oferecer-me uma consulta grátis em clínica de implantes capilares.

ilustração em vermelho e preto mostra processo de transplante de cabelo em várias etapas.
Angelo Abu/Folhapress

Quando olhei para o papel, pensei que era piada. Ri alto. Não era. Ele próprio conhecia alguém que já tinha 
experimentado: entrou calvo, saiu com uma cabeleira digna de Jimi Hendrix. Por que não dar uma chance? A primeira consulta já estava paga.

Falei com a minha senhora. Vamos juntos? Ela tentou demover-me. Eu tentei convencê-la. Só por curiosidade.

Só para saber como são as coisas. Sem sucesso.

Avancei sozinho. Dia de chuva. Sala de espera. Um rapaz, ainda jovem mas completamente calvo, aguardando pela sua consulta, me olha com desconfiança. Como se fosse heresia eu estar ali, com meus cabelos ralos mas resistentes.

Sorri de compaixão. Ele desviou o olhar.

Alguém chamou pelo meu nome. Levantei-me. Uma moça de bata branca cumprimentou-me efusivamente e pediu para eu me sentar em uma cadeira apropriada.

Depois, aproximou-se da minha cabeça com um silêncio respeitoso, digno de um funeral. Com uma lapiseira, começou a pontilhar a minha testa.

No fim, mostrou o resultado: eu, transformado no monstro do Frankenstein, como se alguém me tivesse cosido a testa com tinta azul. “Que é isso?”, perguntei, alarmado.

Ela explicou, como se falasse de estratégia militar: o cabelo tinha recuado seis centímetros com a idade; era preciso não ceder ao inimigo e avançar até a linha azul que ela tinha marcado. A guerra não estava perdida.

Estremeci. E estremeci ainda mais quando fui informado dos procedimentos —cabeça raspada, transplante de folículos laterais, implantação nas zonas afetadas, possíveis efeitos secundários, medicação apropriada. “Quando começamos?”

“Nunca” seria a resposta honesta, mas optei pela mentira civilizada: “Vou pensar no assunto”. Ela, temendo perder a sua presa, contra-atacou: “Não custa nada. Quer ver como é?”

Eis a proposta: um cliente realizava o seu implante na sala ao lado. Com a sua autorização, era possível testemunhar o milagre e afastar todos os fantasmas.

O cliente deu a autorização. A porta se abriu. Senti que poderia desmaiar. O infeliz estava deitado em posição fetal e duas enfermeiras colhiam os redentores folículos, que depois observavam ao microscópio.

Mas foi a cabeça do infeliz que me ficou na memória: uma bola em carne viva, espichando sangue sobre a toalha. Era como se alguém o tivesse atropelado —e ele, animal ferido, morrendo aos poucos na berma da estrada.

Perante o meu esgar de horror, a moça tentou aligeirar o cenário. “Não dói nada, não dói nada.” Mas o infeliz sentiu-se ofendido com o descaso e começou a gemer como resposta. Fui removido dali de imediato.

Noite. Regressei à casa, cansado e derrotado. Quando entrei, a criança se assustou com a linha tracejada na minha testa. Só então me apercebi de que tinha fugido da clínica sem a limpar.

Pior: o suor tinha espalhado a tinta pela testa abaixo, o que provocou risadas delirantes na minha mulher. “Essa franja já é o implante?”

Envergonhado, saltei para a banheira e removi os últimos vestígios da minha curiosidade capilar. Mas como limpar também a memória ensanguentada do infeliz?

Prevendo uma noite de insônia, subi ao sótão da casa em busca de uma companhia que não me julgasse ou parodiasse. Encontrei. E adormeci sem esforço, abraçado a um anão de porcelana.

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.