João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Artefatos do século 7º estão mais vivos que muitos especialistas do século 21

Pensar que conhecimento é só técnica é não saber nada sobre a sua natureza

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Tenho saudades dos amadores. Pensei nisso quando assistia a “A Escavação”, filme estimável de Simon Stone recém-lançado pela Netflix.

O longa narra a odisseia real de Basil Brown, funcionário do Museu de Ipswich que é contratado pela viúva Edith Pretty para fazer escavações na sua propriedade.​

Ilustraçao de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho
Angelo Abu

Edith tem o pressentimento de que as suas terras podem albergar tesouros arqueológicos importantes. Basil vai e fareja o local (de acordo com ele, o nariz é o órgão mais importante para a arqueologia).

Depois de um início em falso e quase letal, ele lá encontra um navio-funerário com suas respectivas preciosidades. Ponto importante: Basil se recusa a ser chamado de arqueólogo. Ele é um escavador.

Arqueólogos são os outros, aqueles que chegam de Londres, do Museu Britânico, para tomarem conta do pedaço. Para eles, Basil é um simplório, que não sabe do que fala. A sugestão de que o navio é anglo-saxão, e não viquingue, desperta gargalhadas nos profissionais.

Resultado: Basil estava certo, os profissionais, errados.

O filme é estimável por várias razões, a começar pelos papéis notáveis de Ralph Fiennes (como Basil) e Carey Mulligan (como Edith). Mas o que me interessou foi essa oposição entre profissionais e amadores, que não fazia sentido há dois séculos —mas que agora está no centro dos debates.

A pandemia, por exemplo: os amadores, que nada sabem de infectologia, só atrapalham no combate à Covid-19. Alguns até governam países, com os resultados conhecidos.

Discordo dessa análise. Primeiro, porque a palavra amador, usada nesse contexto, é sinônimo de “ignorante” —um abuso e um absurdo.

Por outro lado, será preciso lembrar que muitos profissionais falharam com igual estrondo? Lembro-me deles, no início, contemplando a pandemia ao longe e tranquilizando as populações: o vírus jamais chegaria ao Ocidente.

O vírus chegou, infectou, matou —e agora, que há vacina, nem assim os profissionais mostram profissionalismo. A União Europeia, por exemplo, foi incapaz de adquirir vacinas a tempo.

Resultado: enquanto o Reino Unido imuniza a população com rapidez e eficácia, a Europa continental, que riu alto do brexit, não consegue proteger os europeus. Razão pela qual, em gesto inaudito, ameaçou bloquear exportações de vacinas para o Reino Unido.

Ao mesmo tempo, Emmanuel Macron não hesitou em levantar dúvidas sobre a eficácia da vacina da Oxford/AstraZeneca, sobretudo nos maiores de 65 anos. Que essa vacina tenha sido aprovada pela Agência Europeia do Medicamento sem reservas, eis um pormenor que não perturbou Macron. Moral da história?

Em matéria logística e até científica, os profissionais da UE não se distinguem de Bolsonaro ou Trump. Exceto, claro, na reverência que inspiram aos pobres de espírito.

Atenção: longe de mim participar no delírio populista que olha para os profissionais como inimigos a abater. Na hora do aperto, eu ainda prefiro um cirurgião profissional a um entusiasta do bisturi.

Meu ponto é outro: quem pensa que o conhecimento é só uma questão técnica nada sabe sobre a natureza dele.

O filósofo Michael Oakeshott, no clássico “Rationalism in Politics”, ou racionalismo na política, de 1947, já tinha avisado: o problema maior do racionalista, criatura que domina o nosso tempo, é achar que o conhecimento prático não tem grande valor. Ele só respeita o conhecimento técnico.

Porém, como argumenta Oakeshott, todo conhecimento que importa é simultaneamente técnico e prático. Como ser um bom cozinheiro se eu me limitar a ler livros de receitas? Como ser um bom político se eu, um craque em macroeconomia, não conheço a realidade do meu povo e do meu país?

Ou, agora, como ser um bom arqueólogo se vivo encafuado na biblioteca de um museu?

Basil Brown, o escavador, não tinha nenhum diploma para mostrar. Mas, como afirma à mulher, a experiência permitia-lhe distinguir, só pelo cheiro, os diferentes tipos de terra do condado de Suffolk.

Basil tinha ainda outra coisa: paixão. Aquela paixão pela descoberta que, em 50% dos casos, já desertou há muito os acadêmicos profissionais.

Normalmente, essas almas mortas vivem escondidas no labirinto da burocracia. Ou, então, são meros cães de guarda, protegendo os seus pequeníssimos territórios da curiosidade dos forasteiros.

Os artefatos que Basil Brown descobriu naquele navio do século 7º estão mais vivos do que a cabeça de muitos especialistas do século 21.

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