A loucura se torna um hábito. Assisto a um filme, a um documentário, a um programa de TV do ano retrasado. E dou por mim a pensar que os atores ou participantes não obedecem às regras de distanciamento social. Pior: nem sequer usam máscara.
Demoro um segundo ou dois a corrigir a minha loucura. Mas o instinto, o primeiro instinto, é a estranheza perante aquele mundo de liberdade e intimidade, que me parece vindo de outro planeta. Serei caso único, leitor? Não minta.
A pandemia trouxe morte e doença. Mas o combate a ela, por mais necessário que seja, também foi moldando os nossos espíritos de acordo com as exigências do “novo normal”.
É por isso que suspiro pelo velho normal todos os dias. E não haverá normalidade sem uma vacinação geral e eficaz.
Pois bem: vacina já há. Falta é vontade para a tomar.
Não sei como estão as coisas no Brasil. Em Portugal, uma enquete recente da Universidade Católica informa que 61% dizem sim à vacinação. Os restantes se distribuem por gente que não vai tomar (8%), por gente que não sabe ou não responde (8%) e por gente que tenciona adiar esse momento sacramental (24%). Preocupante?
Nem por isso. Em vários países europeus, é muito pior —e a França leva a copa do ceticismo. Como explicar essa onda de desconfiança e temor que pode pôr em risco a tão desejada imunidade de grupo?
Sim, eu sei: os céticos temem os efeitos secundários e não confiam na rapidez com que as vacinas foram desenvolvidas e aprovadas. Mas isso são temores conjunturais, não estruturais.
A verdade é que o medo das vacinas, que sempre existiu desde o século 19, está hoje mais disseminado do que nunca e não se limita aos famosos “anti-vaxxers” (antivacinas) que espalham a sua “ciência” na internet.
Tentar explicar o fenômeno é tarefa para vários dias. Mas eu desconfio que o ceticismo anticientífico está diretamente relacionado com o sucesso da medicina nos últimos 150 anos. Paradoxal?
Será: se a medicina permitiu uma melhoria radical das nossas condições de vida, isso seria uma razão favorável a uma maior confiança nos seus métodos e produtos. Quem, em juízo perfeito, gostaria de retornar a um passado sinistro em que a expectativa média de vida não passava dos 30 anos e pragas como a peste bubônica dizimavam populações inteiras?
Acontece que os seres humanos não funcionam dessa forma, exceto na cabeça racionalista dos otimistas. Como dizia Woody Allen sobre a sua infância, ninguém se suicidava no Brooklyn; todos eram demasiado infelizes para isso.
Parece piada, mas não é: Émile Durkheim já tinha notado como, em tempos de guerra, diminui o número de suicídios; as matanças privadas só recomeçam em tempos de paz.
O mesmo acontece em tempos de conforto médico: como explica Jonathan Berman no melhor livro que conheço sobre os antivacinas (“Anti-Vaxxers: How to Challenge a Misinformed Movement”, antivacinas, como mudar um movimento mal informado), a hostilidade contra as vacinas foi crescendo nos Estados Unidos à medida que os terrores da poliomielite, derrotados pela descoberta da vacina em 1952, iam desaparecendo da memória coletiva.
Eis a moral da história: entediados pela abundância material e pelo progresso tecnológico, até nos esquecemos de como a vida era brutal para os nossos antepassados.
Por isso nos tornamos decadentes, cultivando uma espécie de nostalgia pelo primitivismo em que a natureza é nossa amiga e o corpo se cura sozinho.
Essa nostalgia teria remédio se fosse possível enviar os “anti-vaxxers” para o passado, condenando-os a enfrentar surtos de cólera ou de febre tifoide sem acesso a farmacologia moderna.
Como isso não é possível, sei que a minha loucura ainda vai continuar por muito tempo sempre que assistir a um filme antigo em que os personagens se beijam ou se cumprimentam.
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