João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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'Bela Vingança' mostra que a decência nas relações entre sexos não é ideologia

Indicado ao Oscar, primeiro longa da diretora Emerald Fennell deixa claro que se trata de uma questão de civilidade

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Ironias da história: as preocupações do movimento MeToo, mais de 50 anos atrás, eram um exclusivo dos “neoconservadores”. Diziam eles que a contracultura dos sixties tinha produzido um ambiente de dissolução moral e disponibilidade sexual que degradava as mulheres.

Exemplo dessa dissolução era, por exemplo, a indústria pornográfica. Os filmes exploravam o corpo feminino e a dignidade da mulher ao encenar situações de abuso e violação para prazer dos homens. Que fazer?

Os “neocons” advogavam restrições no acesso a tais produtos. Era preciso um retorno às virtudes vitorianas de contenção e respeito.

Entendo as preocupações dos “neocons”, mesmo discordando da terapia censória. E entendo as preocupações do movimento MeToo, que retomam esse diálogo.

Mas, cansado de trincheiras políticas, digo apenas que a decência nas relações entre sexos não é uma questão ideológica. É uma questão de civilidade. Um homem que trata uma mulher como lixo (ou vice-versa) dificilmente pode ser considerado um homem (ou uma mulher).

Aliás, se dúvidas houvesse, bastaria assistir a “Bela Vingança”, primeiro longa da diretora Emerald Fennell. É a história de Cassie (Carey Mulligan), uma promissora estudante de medicina que abandonou o curso depois de um acontecimento traumático na universidade com a sua melhor amiga, Nina.

Com 30 anos, Cassie vive em casa com os pais, trabalha num café com entusiasmo nulo e sai à noite para os clubes da cidade. Sua estratégia é sempre a mesma: simular embriaguez para que os homens vejam ali uma oportunidade.

Os homens veem, claro, e moralizam de imediato: uma mulher naquele estado está mesmo a pedir um abuso, embora o mesmo raciocínio não seja aplicado a um homem embriagado. Será que ele também está pronto para ser sodomizado?

Os rapazes não perdem tempo com tais questões. Aproximam-se de Cassie, oferecem ajuda, oferecem carona, alertam para os perigos que a noite esconde.

Mas são eles o perigo, ainda que não se vejam como tal. A missão de Cassie é mostrar-lhes o reflexo das suas próprias almas deformadas.

Aliás, não apenas aos homens. “Bela Vingança” não poupa as mulheres que, por fraqueza ou cumplicidade, não querem arruinar a vida dos “bons rapazes”.

Podem ser antigas colegas de faculdade que preferiram não ver ou denunciar. Pode ser a antiga diretora da faculdade, que agiu da mesma forma. Haverá salvação para as mulheres quando as próprias mulheres se comportam como os mais selvagens dos homens?

“Bela Vingança” é o retrato de uma cultura perversa de abuso e impunidade. Mas um dos trunfos do filme está no tom cômico-trágico com que apresenta a vida solitária de Cassie e a sua busca por vingança e redenção.

É uma escolha arriscada, mas feliz: a excentricidade visual e narrativa da obra aprofunda a dissonância moral que ela denuncia. Enquanto o mundo ao redor tudo desculpa com “brincadeiras de juventude”, Cassie se recusa a participar dessa farsa até as últimas consequências.

É por isso que uma das melhores sequências do filme é também das mais banais: Cassie caminha pela calçada e, do outro lado da estrada, um grupo de operários inicia uma cantada vulgar.

Cassie para e se limita a olhar para eles. Confusos com a atitude, os operários optam pelo insulto e se afastam, como se tivessem sido ofendidos pela atitude de Cassie.

Em poucos segundos, eis o essencial da miséria masculina: a incapacidade de olhar para uma mulher para lá do pedaço de carne ou da ameaça.

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