João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho
Descrição de chapéu Cinema

Arte de Anthony Hopkins é um dos mais radicais significados de ser humano

Se Hannibal Lecter não conhecia o mais leve sentimento, estrela de 'Meu Pai' é assoberbado pelos seus sentimentos

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Conheci Anthony Hopkins na adolescência. O encontro se deu numa sala de cinema, daquelas que antigamente albergavam 200 ou 300 pessoas —e que desapareceram, entretanto. Pretexto? “O Silêncio dos Inocentes”, claro, o melhor filme de Jonathan Demme depois de “Totalmente Selvagem”.

Não vale a pena relembrar a história do filme, que qualquer ser bípede conhece. Fixo apenas o meu encontro com o doutor Hannibal —“The Cannibal”— Lecter: depois de ser informado da psicopatia do homem nos primeiros minutos do filme, eu esperava um monstro atrás das grades. De preferência, comendo uma coxinha —humana, e não de frango.

Engano. Lecter não comia coxinhas; preferia fígados humanos com um copo de Chianti. Nos intervalos dessa “haute cuisine”, o cavalheiro gostava ainda de pintar Florença—de memória— e escutar Bach —as “Variações Goldberg”.

Como já escrevi nesta Folha, aquele encontro ensinou-me bastante sobre a natureza do mal, sobretudo quando persiste a velha crença racionalista de que o mal nasce da ignorância. Se os homens conhecerem a verdade, conhecerão por inerência o caminho do bem.

Dentro de uma taça há a figura de um rosto amedrontador. Ao redor do copo, há um tipo de asa vermelha com manchas pretas
Ilustração de Abu para coluna de João Pereira Coutinho, publicada em 12 de abril de 2021 - Abu

Lampejos dessa atitude persistem até hoje: os males que nos afligem serão facilmente redimidos pela educação ou pela cultura.

Hannibal Lecter implodia com esse otimismo: o mal era simplesmente uma forma de estar no mundo. Não era produto da ignorância, ou da pobreza, ou do ressentimento. Lecter reencenava o mistério do mal para os nossos tempos desencantados.

Mas não só: o mal dele era elegante, de uma impassibilidade estoica —não é por acaso que, entre as leituras prediletas de Hannibal Lecter, estão os “Pensamentos”, de Marco Aurélio.

Até então, o cinema era pródigo em vilões fisicamente brutais e emocionalmente descontrolados. Aliás, no mesmo ano de “O Silêncio dos Inocentes”, Martin Scorsese oferecia Max Cady/Robert de Niro em “Cabo do Medo”, um desses seres diabólicos e vulcânicos.

O doutor Lecter, na sua feroz imobilidade, no seu absoluto autocontrole, jogava em outro campeonato. Não era desumano, como Cady; era inumano, como uma máquina.

Não admira que, em entrevistas posteriores, Anthony Hopkins tenha confessado que a inspiração para Lecter foi o computador Hal 9000, de “2001: Odisseia no Espaço”. Haverá modelo mais perfeito de contenção irónica e malévola?

Passaram 30 anos sobre o filme —e sobre a minha adolescência. Mas é com o mesmo sentimento de fascinação que encontro Hopkins em “Meu Pai”, filme de Florian Zeller já disponível no Brasil.

Essa fascinação só é explicável por referência ao personagem que o lançou para a estratosfera, 30 anos atrás: se Hannibal Lecter era um prodígio de contenção sobre-humana, vemos o inverso com o personagem Anthony em “Meu Pai”, um octogenário que vai perdendo a razão para a demência.

Pelos seus olhos, vemos o mundo em desagregação —rostos familiares que ele não conhece; rotinas diárias que viram pesadelos surreais; conversas banais cujo sentido é mais enigmático do que o teorema de Fermat.

E, nesse labirinto, Anthony tenta agarrar-se a um princípio de ordem, a um destroço de lógica, como um náufrago em plena tempestade.

Se Hannibal Lecter não conhecia o mais leve sentimento, Anthony é assoberbado pelos seus sentimentos —o temor, a raiva, a suspeição, a ignorância, muitas vezes ao mesmo tempo— como se fosse uma criança aprisionada no corpo de um velho.

Se Hannibal era inviolável, Anthony é de uma vulnerabilidade transbordante, quase embaraçosa —e é quando estabelecemos esse contraste entre as duas criações de Hopkins que podemos medir a versatilidade, a inteligência e o gênio do ator.

Eu sei: faz parte do espírito do tempo deplorar a palavra “gênio” pelas suas conotações elitistas e anti-igualitárias. Tudo é construção social, nada escapa ao materialismo mais rasteiro.

Exemplo: Mozart não era um gênio; teve apenas sorte de nascer numa família privilegiada, em que aprendeu música desde a infância.

E, mesmo quando se admite que alguns podem ser mais talentosos do que outros, esse talento é rapidamente obscurecido por imperativos extra-artísticos ou ideológicos.

Exemplo: o personagem de “Meu Pai” é uma criação sem relevância no meio da urgência da “guerra cultural” em curso.

Para esses pobres de espírito, boa noite e boa sorte. A arte de Anthony Hopkins é uma das mais radicais explorações do que significa ser humano —das trevas de Hannibal à desarmante fragilidade de Anthony.

É um milagre e uma sorte sermos seus contemporâneos.

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