Conheci Anthony Hopkins na adolescência. O encontro se deu numa sala de cinema, daquelas que antigamente albergavam 200 ou 300 pessoas —e que desapareceram, entretanto. Pretexto? “O Silêncio dos Inocentes”, claro, o melhor filme de Jonathan Demme depois de “Totalmente Selvagem”.
Não vale a pena relembrar a história do filme, que qualquer ser bípede conhece. Fixo apenas o meu encontro com o doutor Hannibal —“The Cannibal”— Lecter: depois de ser informado da psicopatia do homem nos primeiros minutos do filme, eu esperava um monstro atrás das grades. De preferência, comendo uma coxinha —humana, e não de frango.
Engano. Lecter não comia coxinhas; preferia fígados humanos com um copo de Chianti. Nos intervalos dessa “haute cuisine”, o cavalheiro gostava ainda de pintar Florença—de memória— e escutar Bach —as “Variações Goldberg”.
Como já escrevi nesta Folha, aquele encontro ensinou-me bastante sobre a natureza do mal, sobretudo quando persiste a velha crença racionalista de que o mal nasce da ignorância. Se os homens conhecerem a verdade, conhecerão por inerência o caminho do bem.
Lampejos dessa atitude persistem até hoje: os males que nos afligem serão facilmente redimidos pela educação ou pela cultura.
Hannibal Lecter implodia com esse otimismo: o mal era simplesmente uma forma de estar no mundo. Não era produto da ignorância, ou da pobreza, ou do ressentimento. Lecter reencenava o mistério do mal para os nossos tempos desencantados.
Mas não só: o mal dele era elegante, de uma impassibilidade estoica —não é por acaso que, entre as leituras prediletas de Hannibal Lecter, estão os “Pensamentos”, de Marco Aurélio.
Até então, o cinema era pródigo em vilões fisicamente brutais e emocionalmente descontrolados. Aliás, no mesmo ano de “O Silêncio dos Inocentes”, Martin Scorsese oferecia Max Cady/Robert de Niro em “Cabo do Medo”, um desses seres diabólicos e vulcânicos.
O doutor Lecter, na sua feroz imobilidade, no seu absoluto autocontrole, jogava em outro campeonato. Não era desumano, como Cady; era inumano, como uma máquina.
Não admira que, em entrevistas posteriores, Anthony Hopkins tenha confessado que a inspiração para Lecter foi o computador Hal 9000, de “2001: Odisseia no Espaço”. Haverá modelo mais perfeito de contenção irónica e malévola?
Passaram 30 anos sobre o filme —e sobre a minha adolescência. Mas é com o mesmo sentimento de fascinação que encontro Hopkins em “Meu Pai”, filme de Florian Zeller já disponível no Brasil.
Essa fascinação só é explicável por referência ao personagem que o lançou para a estratosfera, 30 anos atrás: se Hannibal Lecter era um prodígio de contenção sobre-humana, vemos o inverso com o personagem Anthony em “Meu Pai”, um octogenário que vai perdendo a razão para a demência.
Pelos seus olhos, vemos o mundo em desagregação —rostos familiares que ele não conhece; rotinas diárias que viram pesadelos surreais; conversas banais cujo sentido é mais enigmático do que o teorema de Fermat.
E, nesse labirinto, Anthony tenta agarrar-se a um princípio de ordem, a um destroço de lógica, como um náufrago em plena tempestade.
Se Hannibal Lecter não conhecia o mais leve sentimento, Anthony é assoberbado pelos seus sentimentos —o temor, a raiva, a suspeição, a ignorância, muitas vezes ao mesmo tempo— como se fosse uma criança aprisionada no corpo de um velho.
Se Hannibal era inviolável, Anthony é de uma vulnerabilidade transbordante, quase embaraçosa —e é quando estabelecemos esse contraste entre as duas criações de Hopkins que podemos medir a versatilidade, a inteligência e o gênio do ator.
Eu sei: faz parte do espírito do tempo deplorar a palavra “gênio” pelas suas conotações elitistas e anti-igualitárias. Tudo é construção social, nada escapa ao materialismo mais rasteiro.
Exemplo: Mozart não era um gênio; teve apenas sorte de nascer numa família privilegiada, em que aprendeu música desde a infância.
E, mesmo quando se admite que alguns podem ser mais talentosos do que outros, esse talento é rapidamente obscurecido por imperativos extra-artísticos ou ideológicos.
Exemplo: o personagem de “Meu Pai” é uma criação sem relevância no meio da urgência da “guerra cultural” em curso.
Para esses pobres de espírito, boa noite e boa sorte. A arte de Anthony Hopkins é uma das mais radicais explorações do que significa ser humano —das trevas de Hannibal à desarmante fragilidade de Anthony.
É um milagre e uma sorte sermos seus contemporâneos.
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