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Por que 'Bela Vingança' marca a nova geração de filmes sobre estupro

Longa de Emerald Fennell, que concorre nas principais categorias do Oscar, é marco da era MeToo, que eclodiu em 2017

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São Paulo

Em vez de serial killers ou pessoas com má reputação social, os estupradores de "Bela Vingança" são como a maioria dos que existem fora das telas, homens que cometem violências sexuais longe de becos escuros —em geral, nas casas das vítimas, deles próprios ou de algum conhecido— e que dificilmente viram alvo de investigações.

Assim como uma imensa quantidade de abusadores ao redor do mundo, os criminosos da ficção criada por Emerald Fennell são jovens bem-sucedidos, repletos de amigos e familiares que não os poupam de elogios e carinho.

Ninguém os ousaria chamar de estupradores, nem mesmo quem os vê numa balada apalpando e beijando mulheres visivelmente inconscientes.

"Bela Vingança", que estreia no Brasil em maio, concorre nas categorias de melhor filme, melhor direção, melhor atriz, melhor roteiro original e melhor montagem da 93ª edição do Oscar, que ocorrerá neste domingo.

Dirigido e roteirizado por Fennell, o longa chega aos cinemas quase quatro anos após a eclosão do MeToo, o movimento feminista que trouxe à tona uma série de denúncias contra poderosos de Hollywood, e marca uma nova geração de produções do chamado "rape-revenge", o gênero do audiovisual que explora narrativas de vingança contra crimes sexuais.

O filme gira em torno de Cassie —papel de Carey Mulligan—, uma mulher que semanalmente vai a bares e boates sozinha para se fingir de bêbada e, assim, se deparar com "um cara legal" oferecendo ajuda a ela.

Após ser levada à cama do "bom moço", que tira suas roupas sem nenhum consentimento —e ignora seus sussurros de reprovação e confusão mental—, Cassie sai do personagem, que já está quase em coma alcoólico, e se revela plenamente sóbria, apavorando o estuprador da vez.

É assim que ela enfrenta o trauma da morte de sua melhor amiga, Nina, causada implicitamente por suicídio. Ambas estudavam medicina juntas e largaram o curso após Nina ser molestada sexualmente por alunos da universidade e não receber nem sequer algum tipo de apoio institucional ou local.

A obsessão de Cassie pelo seu passado traumático se intensifica após reencontrar um ex-colega de classe, Ryan —papel de Bo Burnham—, com quem ela se envolve romanticamente e, por meio de conversas, descobre que o principal abusador de Nina está com a carreira bem encaminhada e prestes a se casar. A partir daí, a personagem traça um plano de vingança contra todos aqueles que participaram ou foram negligentes com o estupro de sua amiga.

Assim como a própria protagonista, "Bela Vingança" é um "rape-revenge" agridoce, marcado por cenas engraçadas, macabras e de suspense.

"O que torna o filme tão interessante é que ele é um produto mainstream olhando para o estupro e a violência sexual a partir da ótica de um problema sistêmico, em vez de individual", diz Alexandra Heller-Nicholas, que estuda o gênero no cinema há mais de uma década e é autora do livro "Rape-Revenge Films: A Critical Study", reeditado neste ano.

Segundo a pesquisadora, "Bela Vingança" já pode ser considerado o filme de 2021. "Além do fato de ser muito bem feito, ele encara o assunto como uma questão atrelada a um sistema falido, o que é muito importante", justifica. "Isso é o que devemos fazer, de forma mais ampla."

Quando a pesquisadora Sarah Projansky lançou o livro "Watching Rape", em 2001, ela dividiu o gênero do "rape-revenge" em dois tipos de narrativa. Numa delas, há uma moça, que é vítima de estupro, em busca de vingança.

Na outra, há um protagonista masculino buscando vingança pela vítima, uma mulher que, embora seja bem próxima a ele, tem sua presença apagada na trama. Um exemplo é o clássico "A Fonte da Donzela", de Ingmar Bergman, vencedor da categoria de melhor filme estrangeiro do Oscar e do Globo de Ouro, há 60 anos.

Quatro homens cercam uma mulher loira que sorri enquanto eles os olham maliciosamente
Cena do filme "A Fonte da Donzela", de Ingmar Bergman, de 1960 - Divulgação

Existem ainda outras características comuns entre a maioria dos filmes desse tipo, como a exibição explícita de cenas de violência contra as mulheres, um teor minimamente sensual em cenas de estupro, o destaque dado à masculinidade, o vilão como um completo desconhecido da vítima, o distanciamento de críticas à estrutura cultural de gênero e a individualização da culpa e do trauma.

A maioria dessas características, no entanto, passa longe de "Bela Vingança". A grande exceção é uma longa e dura cena de feminicídio, que dividiu opiniões e gerou uma série de críticas negativas à obra.

Ainda assim, ao contrário de muitos filmes dessa categoria, a protagonista não é vítima de estupro —palavra que, aliás, nunca é dita no longa, embora seja o motor da história—, e sim uma mulher vingando a amiga.

"Bela Vingança" também retrata tentativas de redenção, o que é pouco comum no gênero. E seu maior diferencial, em relação à maioria das obras desse tipo, é que o grande vilão da história não é um estuprador ou um grupo de criminosos, mas sim a própria cultura do estupro.

"Sinto que mulheres fazem —ou tentam fazer— o que vemos como ‘cinema e TV da era MeToo’ há muito tempo", diz Heller-Nicholas. "Mas só agora, no contexto desse movimento, é que isso é viável, tanto em termos comerciais quanto em de recepção do público."

Anna Vitória Rocha, que é pesquisadora sobre o impacto do MeToo na construção da opinião pública sobre gênero, afirma que o movimento já nasceu como um olhar às estruturas socioculturais e dispensa individualizações.

"No audiovisual, que é o berço do MeToo, temos cada vez mais vozes e linguagens, o que é uma premissa deste movimento", diz Rocha, que destaca outras produções do tipo pós-eclosão do movimento, como a aclamada série "I May Destroy You", da HBO, e o filme "A Assistente", de Kitty Green, que rompem com muitos dos clichês da categoria.

"I Hate Suzie", da Sky, e "The Morning Show", da Apple, também integram a lista de sucessos desse tipo.

Mas, se por um lado o MeToo vem abrindo portas para uma nova era da representação da cultura do estupro no mainstream, por outro, o público que a consome ainda é de nicho e pouco diverso.

"Recorte de classe está diretamente atrelado ao acesso a essas ficções. Estamos falando de salas de cinema, TV paga, serviços de streaming e plataformas sob demanda", diz a especialista em séries audiovisuais Clarice Greco. "Isso ainda precisa chegar à TV aberta, e com mais força."

Bela Vingança

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