João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Descrição de chapéu

Quando o vírus for domado, não será preciso beijar mamilos ou cumprimentar pênis

Quem pensa que o aperto de mão desaparece por causa de uma pandemia está dramaticamente enganado

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Existem tribos na Papua-Nova Guiné que têm formas imaginativas de se cumprimentarem. Existe a prática de chegarmos à tribo e, como forma de respeito, chuparmos o mamilo da mulher do chefe.

E existem tribos onde o forasteiro cumprimenta o pênis do nativo —ou, em alternativa, deposita o seu próprio pênis na mão dele. Depois, é preciso aguardar. Se o nativo não recusar o órgão, é sinal de que somos bem-vindos. Se recusar, o melhor é fugir.

Quando lia essas meditações, foi impossível não cogitar: será que no mundo pós-pandemia vamos adotar alguns desses procedimentos? Ou as notícias da morte do aperto de mão são manifestamente exageradas?

A paleoantropóloga Ella Al-Shamahi opta pela segunda hipótese no seu maravilhoso “The Handshake: A Gripping History” (Profile Books, 176 págs.).

Com ela, conheci as tribos da Papua-Nova Guiné e seus elaborados cumprimentos mamários ou fálicos. Mas o livro serve para dissipar as ansiedades do presente sobre o mundo futuro: quem pensa que o aperto de mão desaparece por causa de uma pandemia está dramaticamente enganado.

Para começar, apertar as manápulas faz parte do nosso DNA. Você conhece aquela história segundo a qual foram os cavaleiros medievais que inventaram o aperto de mão para mostrar ao parceiro que estavam desarmados?

Pura fantasia, inventada em 1887. Para começar, os apertos são observáveis em nossos primos símios, que usam as palmas para manifestar simpatia.

Além disso, e para ficarmos na história humana, o primeiro aperto de mão como símbolo de concórdia está gravado na pedra: falo do momento em que o rei assírio Shalmaneser 3º firmou a paz com o rei babilônio Marduk-Zakir-Shumi 3º no século 9 a.C.

Depois deles, são incontáveis as obras de arte que eternizaram o hábito —até chegarmos a Thomas Jefferson, um dos pais fundadores da nova república americana, para quem o aperto de mão, e não as vênias cortesãs, era o símbolo máximo da nova era democrática (George Washington, curiosamente, era avesso a essas familiaridades).

Obra "Gabrielle d'Estrées e Uma de Suas Irmãs"
Obra "Gabrielle d'Estrées e Uma de Suas Irmãs" - Reprodução

Eis o ponto: quem vive no meio de uma pandemia tem certa dificuldade em manter a perspetiva histórica. Mas, como defende Ella Al-Shamahi, o que arrepia na Covid-19 é a sua absoluta repetição. Quarentenas? Isolamentos? Distância social?

Ao longo da história, foram mil vezes implementados. E, em todos esses momentos, aqueles que os viveram decretaram apressadamente a morte de vários hábitos.

Em 1793, um surto brutal de febre amarela esvaziou a cidade de Filadélfia, então capital dos Estados Unidos. E os especialistas da época fizeram exéquias pela convenção criminosa de apertar as mãos.

Mais ainda: em 1894, nascia no Império Russo a primeira Sociedade Anti-Apertos de Mão como forma de sensibilizar os súditos para os perigos da cólera. Informa a autora que os seus sócios pagavam seis rublos por ano para usarem o crachá respectivo —e pagavam três de multa por cada apertadela trangressiva.

Fatalmente, o nosso DNA não perdoa; e a nossa necessidade de tocar, agarrar, abraçar, beijar é sempre mais forte do que os terrores momentâneos.

Essa é a razão pela qual o mundo pós-pandémico será bastante semelhante ao mundo pré-pandémico, ao contrário do que afirmam os sábios apocalípticos: quando esse vírus estiver domado, não será necessário beijar os mamilos das mulheres dos nossos amigos, muito menos cumprimentar os membros penianos dos respetivos maridos.

Brindo a isso.

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