João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

João Pereira Coutinho

Vadia, língua portuguesa sempre foi promíscua, com suas muitas influências

Como a fala do Brasil ou Moçambique pode não trair o marido português, que também nunca foi fiel?

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo, 11 horas da manhã. Entro no táxi, indico o endereço ao motorista, o carro inicia a viagem.

Conversamos. Política, pandemia, trânsito na cidade. A certa altura, ele pergunta: "De onde você é?".

Respondo, um pouco surpreso: "Portugal". Ele sorri e depois elogia: "Você fala muito bem a nossa língua".

Agradeço, honrado: quem diria que, vindo de Portugal, eu saberia falar essa língua chamada português? Aliás, até acrescento: "Língua difícil, mas eu vou chegar lá". Ele, compreensivo, consola a minha insegurança: "Imagina! Já está bom assim".

Trecho aleatório de "Os Lusíadas", de Camões, grafado nos alfabetos  árabe, grego e latino, embaralhados e sobrepostos em tamanhos diferentes, variando em preto e vermelho
Ilustração publicada em 11 de abril - Angelo Abu

Seria fácil olhar para o motorista e deplorar a ignorância dele. Será que ele nunca estabeleceu uma ligação entre "Portugal" e "língua portuguesa"?

Pergunta absurda. Talvez o ignorante seja eu. Talvez o meu português seja mesmo diferente do dele. Talvez ele fale "português" e o meu português seja uma melodia parecida, familiar, quase igual. Quase.

É uma hipótese que não me perturba, apesar de perturbar os puristas da língua, que sonham com um idioma unificado. Conheço vários: confrontam-se com versões brasileiras ou africanas —na sintaxe, no léxico, na semântica— e vão a correr buscar os dicionários e as gramáticas, com a fúria punitiva de um mestre-escola.

Alguns até fizeram um Acordo Ortográfico, a suprema tentação racionalista, para determinar como milhões de falantes devem usar o idioma. Pobrezinhos. Não saberão eles que o português nasceu antes de Portugal e que continuará a evoluir fora do país?

Tomo essa ideia de empréstimo a Fernando Venâncio e ao seu livro "Assim Nasceu uma Língua" —edição portuguesa da Guerra & Paz—, que não me canso de recomendar. O português é anterior a Portugal?

Sim, se olharmos para a Península Ibérica, algures no século 6º, quando o espanhol e o galego, ambos derivados do latim, se escutavam por aquelas bandas.

O que parece ter singularizado o galego foi o abandono de certas letras intervocálicas, como o "l" ou o "n", que acabariam por definir o português. "Voar" não é "volar". "Perdoar" não é "perdonar".

Quando Portugal nasce em 1143, não nasce nenhuma língua portuguesa. Dom Afonso Henriques não era como aquele personagem de um filme de Woody Allen, que obrigava todo mundo a falar subitamente sueco na sua recém-criada república das bananas.

O galego era o idioma do baronato medieval do norte do país, pelo menos até inícios do século 14, quando começa um afastamento dessa raiz "rural".

Introduz-se o "i" entre vogais, por exemplo, e os galaicos "avea", "balea" ou "cadea" viram "aveia", "baleia", "cadeia".

Mas a deslocação do poder político para sul, para Lisboa, também faz com que a língua, ironicamente, se aproxime do espanhol, considerada a língua erudita pelas elites.

É o momento em que o "l" e o "n", expulsos séculos antes, regressam pela porta da frente. "Dooroso" é agora "doloroso". "Lumioso" é "luminoso".

Esse namoro continuará até ao século 18, quando a França das luzes irradia sobre a Europa a sua supremacia e influência. Pelo menos, até o inglês acabar com a festa francófona, contaminando o linguajar dos patrícios.

Eis a verdade: a língua portuguesa sempre foi promíscua. E quando não estava recebendo influências terceiras, ela própria criava suas extravagâncias. Em que outras línguas românicas se encontram adjetivos como "inglório", verbos como "fruir" ou substantivos como "pelintra"?

A Espanha pode ter muita gente fidalgal; mas tente encontrar por lá alguém "figadal".

Nas palavras de Fernando Venâncio, "a história do português é, em larga medida, a história das suas tentativas de afastamento do galego".

E o que é válido para o passado, será válido para o presente e para o futuro: como esperar que a fala do Brasil, ou de Angola, ou de Moçambique, continue fiel ao marido português?

O marido nunca foi fiel para começar. Razão pela qual não deve fazer cena quando "flagra" a sua dona numa "paquera", num "amasso" ou numa "transa".

Nos próximos anos, nas minhas estadas paulistanas, prometo continuar o estudo da língua que os nativos falam. Quem sabe? Um dia, eu próprio serei capaz de falar na perfeição esse tal de português.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.