Descrição de chapéu Onde se fala português

Colonialismo tardio e dados imprecisos aprofundam diferenças entre países lusófonos

Veja quais fatores históricos levar em conta quando analisar características das nações de língua portuguesa

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Guarulhos

Nove pontos no mapa-múndi, distribuídos em quatro continentes, marcam hoje aquilo que é conhecido como a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.

A língua –ora tida como a quinta mais falada do mundo, ora como a sétima– é partilhada por um contingente aproximado de 260 milhões a 280 milhões de pessoas, número que deve dobrar até o final do século 21, se consideradas as projeções demográficas das Nações Unidas para a África, onde estão seis dos países lusófonos.

Mais de cinco séculos após a expansão ultramarina de Portugal levar às ex-colônias o português, e muitas vezes impô-lo à força, essas nações compartilham a língua, alguns costumes e parte de suas histórias —mas estão longe de ser uma massa homogênea.

Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste situam-se de maneira bem diferente nos índices internacionais que comparam áreas como economia, desenvolvimento humano e democracia. Há uma receita para ler essas diferenças, que envolve conhecimento sobre as características locais e pitadas de contexto histórico.

A Folha conversou com dois especialistas em lusofonia para saber quais fatores devem ser levados em conta na hora de analisar a radiografia dos países de língua portuguesa.

Professor de economia da Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul, e ex-secretário-executivo da Comissão Econômica da ONU para a África, o guineense Carlos Lopes explica que o colonialismo tardio é um dos principais fatores que levaram os lusófonos a se desenvolverem de forma tão diferente.

Enquanto o Brasil se tornou independente em 1822, os países de língua portuguesa localizados na África conquistaram sua independência mais de um século depois, na década de 1970. A independência tardia, afirma Lopes, teve dois efeitos principais.

Com uma economia estruturada na dependência de matérias-primas, essas nações demoraram a iniciar o processo de industrialização, modernização econômica e diminuição da informalidade. “O colonialismo tardio traz com ele uma longa caminhada para chegar à transformação estrutural.”

A conquista da independência em meio ao contexto da Guerra Fria também fez com que as novas nações tivessem de se posicionar de algum lado da disputa geopolítica, o que imprimiu contornos bem específicos às relações internacionais dos países. Houve ainda um atraso na formação de quadros políticos, já que, em geral, os lusófonos africanos chegaram à independência com um restrito acesso ao ensino superior, o que desembocou em problemas de gestão pública.

“As antigas colônias portuguesas na África foram os últimos territórios do continente a contar com um estabelecimento de ensino superior", diz a historiadora Helena Wakim Moreno, mestre pela USP e professora do Centro Universitário Sumaré. “Em Angola e Moçambique, essas instituições só foram formadas em 1963.”

A contextos gerais se soma o que Lopes classifica como fabricações locais. “Na maior parte dos países, houve uma gestão do dinheiro público concentrada na classe dominante e, portanto, criou-se uma elite que gosto de chamar de rentista —aquela que suga a renda fácil que vem das matérias-primas”, diz.

O comparativo internacional da lusofonia também pede cautela para a análise dos dados de nações africanas. Segundo Lopes, parte considerável das estatísticas dessas nações apresenta problemas nos censos —com exceção do arquipélago de Cabo Verde. “Nesses países temos uma média de 60% da população que não tem documentos, e apenas 10% das terras têm algum registro formal.”

A situação não é melhor na contabilidade nacional, que fornece informações para que se possa, por exemplo, comparar o PIB (Produto Interno Bruto) dos países. O economista explica que os lusófonos africanos têm poucas atualizações na metodologia que afere a situação financeira. Um exemplo é Guiné-Bissau, onde o ano-base de dados econômicos ainda é o de 2007.

“A economia que esses Estados conhecem é a das transações internacionais, como matérias-primas, balanço de pagamentos e ajuda financeira. As outras, de que os governos não precisam para funcionar, são abstraídas”, diz. “Isso exacerba a desigualdade, porque há uma parte significativa da população que vive às margens do Estado moderno.”

Com esses contornos históricos, emergiram também nações muito diferentes quando os temas são o desenvolvimento humano e as liberdades democráticas —algo que muitos dos lusófonos africanos, por exemplo, só foram vivenciar na década de 1990, quando tiveram início eleições multipartidárias.

“Os Estados estiveram por muito tempo submetidos a uma legislação do Estado colonial português que colocava uma série de restrições à educação e à economia”, diz Moreno. “Os africanos não podiam ser donos de comércios, e o desenvolvimento econômico estava nas mãos da elite colonial estrangeira.”

Lopes acrescenta que o contexto histórico-social fez com que fossem retardadas as condições para que uma democracia plena emergisse na maioria dos países de língua portuguesa. Com uma administração pública que reconhecia apenas uma pequena parcela da sociedade —em geral, os colonos— como cidadãos, o comportamento cívico e participativo demorou a chegar para grande parte da lusofonia.

“Os Estados, após a independência, alargaram mal a cidadania, porque havia um hábito da administração colonial de tratar a maior parte das pessoas como sujeitos, não como cidadãos”, diz. “E então começa a emergir uma democracia fechada, para os letrados. Isso exacerbou a etnicidade, o tribalismo.”

Por isso, ele critica os comparativos internacionais que não levam em conta o contexto africano. “Digo que devemos democratizar a África e africanizar a democracia. Ou seja, aceitar que há um determinado número de características próprias do continente que precisam ser levadas em conta.”

A partir desse incômodo, o economista participou da formulação do Índice Ibrahim de Governança Africana, que mede anualmente a qualidade da administração em 54 países africanos.

Do outro lado do Atlântico, o Brasil, também uma jovem democracia, não têm mostrado grandes êxitos nos comparativos internacionais. O país vem caindo desde a década passada no ranking que mede a democracia e também despenca, por quatro anos consecutivos, no ranking de liberdade de imprensa.

Desde 1996, os nove países lusófonos, que já compartilham a língua e parte de suas histórias, passaram a integrar a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, uma cúpula internacional cuja articulação teve grande participação do brasileiro José Aparecido de Oliveira (1929-2007), ex-ministro da Cultura.

Lopes critica o que chama de “excitações diplomáticas” na história da CPLP e parte de sua arquitetura institucional. Um dos principais problemas seria o fato de as lideranças bienais da comunidade serem eleitas por meio de rotatividade geográfica. “Isso condena a comunidade a ter sempre uma pessoa designada pelo país da vez, em vez de escolher o melhor, a pessoa mais representativa e capaz.”

Por outro lado, tece elogios e reconhece feitos que a mobilização diplomática já alcançou. “Veja a quantidade de líderes mundiais que a comunidade consegue produzir”, diz , referindo-se ao português António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas pelo segundo mandato consecutivo, ao brasileiro José Graziano, ex-diretor-geral da FAO (agência da ONU para Alimentação e Agricultura), e a ele próprio, que atua na ONU e já liderou a Comissão Econômica das Nações Unidas para África —uma espécie de Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) africana.

A historiadora Helena Wakim Moreno afirma que a CPLP tem muito a oferecer aos falantes de português, especialmente se ampliar as prioridades para além “da tônica economicista adotada nos últimos anos”. Assim, para ela, mais cooperações universitárias, de pesquisa e ensino seriam bem-vindas.

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