João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Descrição de chapéu Cinema

'Má Sorte no Sexo' confronta moralistas com suas próprias sujeiras

Novo filme do diretor romeno Radu Jude traz para as telas um mundo sombrio, delirante, às vezes grotesco e infantil

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Os romenos são um caso. Lemos os pensamentos de Tristan Tzara, as peças de Ionescu, os diários de Mircea Eliade —o seu diário português é um achado— e encontramos uma forma de ver e de viver a vida que, de tão trágica, ganha contornos obviamente cômicos. Uma contradição?

Não creio. Segundo vários relatos, o escritor Franz Kafka costumava rir até às lágrimas quando lia as suas histórias aos amigos. Acontece o mesmo comigo quando leio os aforismos do inestimável (e romeno) Emil Cioran.

É esse mundo sombrio, delirante, às vezes grotesco e infantil que encontramos em "Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental", o mais recente filme de Radu Jude.

Cena do filme 'Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental', dirigido por Radu Jude

Primeira advertência: não é um filme para toda a família. Os primeiros cinco minutos são pornografia hardcore: Emi, uma professora de história em Bucareste, decide gravar um vídeo íntimo com o marido.

Escusado será dizer que produções dessas podem acabar barbaramente mal: o vídeo é vazado nas redes (intencionalmente? Por engano?) e a professora é chamada ao colégio para uma sessão de esclarecimento com os horrorizados pais dos alunos.

A câmera de Radu Jude começa por acompanhar a professora na sua interminável caminhada rumo ao colégio. É a oportunidade perfeita para mostrar Bucareste, essa "Paris do Leste" que a ditadura comunista de Nicolae Ceaușescu foi arrasando em nome da ideologia.

O que ficou é uma paisagem de plástico, invadida por luzes horrendas e habitada por seres ainda mais horrendos, que se insultam com uma violência desesperada. Não é um exclusivo romeno, eu sei —morar em qualquer grande cidade, e sobretudo dirigir pelas suas ruas, é contemplar o cemitério da gentileza e da sanidade. Mas os romenos deste filme fazem da grosseria uma arte.

Esse painel urbano permite a Radu Jude interromper a trama principal para introduzir uma espécie de enciclopédia sobre o país e o mundo.

É o seu "Breve Dicionário de Anedotas, Sinais e Maravilhas", uma sucessão de quadros onde o humor e o cinismo nos permitem contemplar o papel do exército romeno em todas as grandes repressões do seu povo, a "neutralidade" da igreja ortodoxa durante a revolução de 1989, que depôs Ceausescu, ou a violência anônima que persiste nas famílias —seis em cada dez crianças do país são vítimas de violência doméstica.

No final do dicionário, entendemos melhor o comentário cruel (e divertidíssimo) que Aleksandr Blok deixou no seu diário, em 1912: "Ontem tive uma grande alegria com o naufrágio do Titanic. Ainda há oceano."

E chegamos ao encontro da professora com os pais dos alunos. Uma sessão onde essas respeitosas figuras condenam a "imoralidade" de Emi —mas não do seu marido— ao mesmo tempo que expelem as maiores torpezas contra mulheres, judeus ou ciganos.

"Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental" não é para todos os gostos –e não é para o meu. Em termos de sátira e aceitando a divisão clássica entre Horácio e Juvenal, prefiro a escola do primeiro –menos óbvia, menos gritante, menos selvagem, mas mais eficaz na sua subtileza irônica e inteligente.

Mas também admito que existem vantagens no circo de horrores que Radu Jude nos apresenta. A maior delas é confrontar diretamente o moralista que há em nós com o reflexo das suas próprias sujidades.

Comparado com elas, o pornô de Emi é uma brincadeira de crianças.​

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