João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho

Maledicência e força bruta numa pequena comunidade

Em 'As Bestas', habitantes de aldeia na Galícia vivem a cultivar os seus ressentimentos

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Nunca perdoei ao grande Robert Benchley a célebre observação sobre os escombros do primeiro hotel Waldorf-Astoria, em Manhattan, demolido para dar lugar ao Empire State Building. "Se estas ruínas falassem, muito nos aborreceriam."

Que horror, Bob! Primeiro, porque o Waldorf devia ser de arromba, olhando para a galeria de personagens que passaram pelo edifício na sua primeira encarnação. E, depois, porque Nova York nunca aborrece, embora o novo Waldorf, que conheço bem, aborreça um bocadinho.

O mesmo não posso dizer de cenários naturais, idílicos, intocados pela mão humana, que normalmente têm o condão de me enfadar de morte.

Aguento o campo durante um dia, talvez dois. Ao terceiro, olhando para a paisagem, faço minhas as palavras de Benchley e murmuro: "Se essas montanhas falassem, muito nos aborreceriam."

Sou um homem de cidades. Não as idealizo. Conheço a solidão, a angústia, os mil vexames da vida urbana.

Mas também conheço aquilo que só a cidade permite: o anonimato, a individualidade, o encanto do fortuito.

E a possibilidade de nos reinventarmos uma vez, duas, dez, sem o olhar intrusivo da pequena comunidade.

Não tenciono convencer ninguém; e admito até que a falha seja minha –ansioso e obsessivo por excelência, preciso de um cenário que esteja em sintonia com os meus humores.

Dois homens e um cão em silhueta contemplam a vista bucólica de montanhas
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 29 de maio de 2023 - Angelo Abu

Os amigos sabem disso. Aliás, conhecem-me tão bem que quando estreou em Portugal o filme "As Bestas", de Rodrigo Sorogoyen, todos eles me convenceram a assistir.

Fui adiando, adiando —até que o filme aterrou cá em casa com a força luminosa de um estrondo. O cinema europeu está vivo. O cinema espanhol está vivíssimo.

Em "As Bestas", estamos na Galícia, numa daquelas aldeias que se foram esvaziando de gente, de crianças, de jovens, de mulheres.

Só ficou uma dúzia de locais, a cultivar os seus ressentimentos no boteco imundo. Entre esses ressentimentos, está a presença de um casal francês, cansado da cidade e que escolheu aquela terra para viver, trabalhar o campo, vender os produtos orgânicos nas feiras da região.

Começa o assédio aos estrangeiros: conversas maldosas, piadas sem piada, grosseria e violência. Que fazem os franceses ali? Que insulto é aquele? Que soberba!

Gradualmente, percebemos que a xenofobia é secundária. O ódio principal está no fato de Antoine (magistral Denis Ménochet) e Olga (idem Marina Foïs) se recusarem a vender as suas terras para que gigantescas turbinas eólicas sejam instaladas.

E, sem a permissão do casal francês, nada feito: todos estão condenados a ficar na solidão e na pobreza.

Meus amigos têm razão: os nativos, no abuso e na bestialidade, personificam o pior das comunidades pequenas —a maledicência, o excesso de confiança, a imposição da força bruta.

O diretor Rodrigo Sorogoyen, no 75° Festival de Cannes, em 2022 - Stephane Mahe - 27.mai.22/Reuters

Mas minha repulsa é empática: quando uma das bestas explica a Antoine por que motivo é tão importante que todos possam vender as terras para sair dali, seria injusto não reconhecer o que existe de desespero nessas palavras.

"Quero uma vida como a tua!", grita Xan (Luis Zahera), para quem a idealização campestre de Antoine é a barreira última para que essa vida aconteça.

O filme de Rodrigo Sorogoyen, que venceu todos os Goya principais (a mais importante premiação do cinema espanhol), é um objeto rugoso e selvagem sobre a relação dos homens com a natureza.

E, nessa relação, Xan e Antoine parecem habitar planetas distintos. O primeiro vê na terra, naquela terra, a configuração de um presídio, onde jazem todas as vidas que ele não teve nem terá.

O segundo acredita que encontrou o paraíso, recusando abandoná-lo por um punhado de euros, mesmo que isso implique o naufrágio de toda vizinhança.

Porém ambos se aproximam na mesma obstinação destrutiva, como se o compromisso fosse uma derrota imperdoável. Homens que são homens não vergam.

De fora desse vórtice, e vítimas dele, estão as raras mulheres da história. Olga, mulher de Antoine, peça central da racionalidade perdida; e a mãe de Xan, a quem Olga oferece, contra toda a probabilidade, um gesto de reconciliação e empatia.

Se você, leitor, está cansado do cinema infantil que enxameia nossas salas e procura um dos grandes filmes dos anos mais recentes, corra para ver "As Bestas".

Se não gostar, eu prometo passar uma semana inteira no campo.

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