João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho

Cabeças iluminadas quebram tabus e depois clamam por mais decência

Por que seria indecente propor a atores desempregados atuar em filmes pornôs?

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Um desses dias, quando você, leitor, visitar um museu de história natural, não se assuste: é provável que eu esteja lá dentro na condição de artefato, junto aos dinossauros e a outros animais primitivos que percorreram a Terra milhões de anos atrás.

A única diferença é que eu estarei vivo, ou semivivo, disposto a tirar fotos com os turistas e a contar algumas histórias do meu tempo.

Uma dessas histórias será a contradição dolorosa que existe em certas cabeças iluminadas. Por um lado, elas desejam quebrar todos os tabus sociais, sexuais, comportamentais.

Por outro, quando se confronta com os resultados tangíveis de tanta libertação, a cabeça iluminada recua de horror e clama por mais decência.

Tempos atrás, lembro-me de escutar a prefeita de Amsterdã falar contra o famoso bairro vermelho da cidade, propondo encerrá-lo. A senhora Femke Halsema, na qualidade de progressista, não negava às mulheres o direito de venderem os seus corpos.

Mas, ao mesmo tempo, entendia que a prática poderia ser problemática: a prostituição está associada ao tráfico de seres humanos e, além disso, os turistas que visitam a cidade nem sempre são respeitosos para com as profissionais nas vitrines.

(As profissionais, já agora, contestaram os planos da senhora Halsema em encerrar o bairro; o bairro continua).

Agora, chegou a vez da Bélgica. Leio no "Daily Telegraph" que os serviços sociais do país perguntam aos atores desempregados se eles considerariam a hipótese de participar em filmes pornô.

Não correu bem –e o PTB, de esquerda, exige a remoção imediata de tal pergunta. Não é "decente", dizem. E, além disso, existe sempre a possibilidade de suspensão do subsídio de desemprego em caso de recusa do candidato.

Que a pergunta não é decente, concordo. Aliás, acrescento que é mesmo doente. Mas eu, convém lembrar, estarei naquele museu, ao lado dos dinossauros, explicando aos turistas que atuar em "O Senhor dos Anéis" não é a mesma coisa que participar em "O Senhor dos Anais".

Um sinuoso par de pernas femininas cruzadas calçando saltos vermelhos e usando meia-calças com padronagem de labirinto
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 12 de junho de 2023 - Angelo Abu

Preconceituoso?

Sou. Mas nunca esperei que os belgas o fossem, atendendo ao país em questão. A indústria de filmes pornográficos é legal na Bélgica. A prostituição também, desde que praticada por adultos independentes e uma vez respeitadas certas condições sanitárias, fiscais etc.

Por outras palavras: o trabalho do sexo, segundo a lei, é uma ocupação como outra qualquer. E, se assim é, por que motivo a pergunta não pode ser formulada, desde que não haja nenhuma ameaça sobre o candidato recalcitrante?

Uma possível resposta seria afirmar, caminhando sobre gelo fino, que existe um "estigma" associado a tais práticas. Mas se o estigma existe, não seria função de uma sociedade verdadeiramente progressista a sua eliminação total?

No limite, a pergunta "está disposto a ser ator de filmes pornô?" deveria ser tão moralmente neutra como "está disposto a trabalhar em novelas?".

Longe de mim defender a proibição da prostituição, da pornografia e de outras ocupações carnais. Não defendo: nem tudo o que é moralmente ambíguo deve ser ilegal.

Mas também não subscrevo a atitude falsamente blasé de considerar que um filho ator pornô ou uma filha nas vitrines de Amsterdã me deixariam cobertos de orgulho.

Mal por mal, prefiro a coerência dos socialistas parisienses que, segundo o mesmo "Daily Telegraph", declararam que a estratégia contra as ratazanas que infestam a cidade passará pela coexistência entre moradores e roedores.

São 2 milhões de parisienses. São 6 milhões de ratazanas. Matá-las? Não é realista e, segundo associações de defesa dos direitos dos animais, seria de uma crueldade intolerável.

O caminho passa por latões de lixo impermeáveis à fome das ratazanas e pela disseminação de contraceptivos para reduzir a fertilidade dos bichos.

Sentimentos contraditórios. Se falamos dos direitos dos animais, não será o acesso à comida um deles?

E como respeitar a autonomia sexual das ratazanas, negando a possibilidade de elas se reproduzirem?

Em nome da coexistência pacífica, eu talvez fosse um pouco mais longe, convidando cada parisiense a adotar três ratazanas.

A julgar pelo rácio entre moradores e roedores, as ruas de Paris ficavam imaculadas na hora.

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