João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

João Pereira Coutinho

Por que somos incapazes de lidar com o ressentimento em política?

Historiador sugere que essas emoções sejam reconhecidas como parte da experiência moderna

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Ressentimento é uma palavra vergonhosa. Pior até que inveja. Uma pessoa pode assumir que inveja algo ou alguém. Eu, por exemplo, tenho uma lista generosa de invejas que começa no A (de "Amis, Kingsley") e termina no Z (de "Zweig, Stefan").

Mas ser um ressentido é o fim da linha. A marca da falência moral. O ressentido não inveja apenas; ele odeia o objeto da sua inveja, talvez por fantasiar que a sua vida seria mais fácil, mais doce, mais triunfal, se o outro não existisse.

A cabeça de um ressentido é um jogo de soma nula: o que o outro ganha, eu perco. Melhor ainda: eu perco porque o outro ganha.

Além disso, e ao contrário da inveja, que vem e vai com a mesma rapidez, o ressentimento é um fogo lento. O ressentido é incapaz de agir, de viver, de seguir em frente. O ressentimento é uma ferida aberta que o ressentido nunca deixa cicatrizar.

E, no entanto, vergonhosa ou não, essa é a palavra que define a nossa condição moderna. Imaginemos um servo, algures na Idade Média, trabalhando o campo dia e noite. Ele sentiria opressão, humilhação, até inveja do seu senhor. Mas ressentimento?

Aquela ideia tóxica de que poderíamos ser nós a estar no lugar do outro?

Seria ilógico, atendendo à estratificação social vigente na época: o servo não se imaginava um aristocrata, nem isso estava no seu horizonte de possibilidades.

O ressentimento precisa de uma cultura democrática, ou igualitária, para prosperar, tal como Alexis de Tocqueville afirmou. Uma cultura na qual as diferenças de classe foram matizadas e as expectativas de ascensão econômica, social, simbólica, parecem mais tangíveis que nunca.

E, com essas expectativas inevitáveis, vêm as frustrações inevitáveis. Ou, resumindo, os ressentimentos inevitáveis.

É por isso de saudar o livro do historiador Robert A. Schneider recentemente publicado: "The Return of Resentment: The Rise and Decline and Rise Again of a Political Emotion" ("o retorno do ressentimento: a ascensão e declínio e nova ascensão de uma emoção política").

Capa do livro "The Return of Resentment: The Rise and Decline and Rise Again of a Political Emotion"
Capa do livro "The Return of Resentment: The Rise and Decline and Rise Again of a Political Emotion" - Reprodução

Sim, todos os suspeitos do costume que escreveram sobre o conceito estão lá: Nietzsche, Dostoiévski, Max Scheler, Albert Camus.

Mas o que me interessou no livro foi uma observação luminosa do autor que explica, em grande medida, a nossa incapacidade para lidar com o ressentimento em política.

Afirma Schneider que, a partir do século 18, com a hipervalorização do racionalismo, houve uma cisão profunda entre a razão e os sentimentos.

Na esfera pública, os sentimentos passaram a ser vistos como infantis, incultos, meras expressões de tempos obscuros.

Eis o paradoxo: ao mesmo tempo em que a era da igualdade trazia o ressentimento para o centro do palco, o racionalismo iluminista privava os homens dos instrumentos necessários para compreender e até lidar com essa emoção.

Isso marca um dualismo que dura até hoje.

Por um lado, a história, a história real, a história que acontece à frente dos nossos olhos, assumiu-se como uma história de ressentimentos –da Revolução Francesa aos nacionalismos das duas guerras mundiais; do terrorismo islamita ao neoczarismo de Putin; sem esquecer, claro, os chamados populismos.

Mas, por outro lado, há uma incompreensão básica dessa dimensão emocional, psicológica, ressentida.

Essa incompreensão não é um exclusivo da esquerda ou da direita. É uma incompreensão radical, comum a ambas e partilhada por ambas em diferentes momentos históricos.

Hoje, o horror aos "deploráveis" parece ser um patrimônio das elites progressistas.

Mas, no século 19, essa repulsa pelo "povo", pelas "massas", pela "multidão", pelo "rebanho", era um clássico das elites reacionárias.

O caso do populismo, aliás, é exemplar. Em finais do século 19, os originais populistas americanos eram pequenos comerciantes e agricultores que se sentiam ameaçados pelos grandes monopólios, pela produção em larga escala, pelo capitalismo, em suma.

Não admira que a esquerda progressista tenha apoiado a mensagem populista sem esforço. As reivindicações dos populistas eram compreensíveis e justificáveis do ponto de vista de econômico.

No século seguinte, e na ressaca do nazismo e do fascismo (que foram movimentos de massas por excelência), a mesma esquerda progressista reinterpretou esse populismo original como mero ressentimento de classe.

Nos trabalhos de Richard Hofstadter, por exemplo, encontramos uma condenação desse populismo primitivo, tido agora como um "ressentimento tão inclusivo que englobava não apenas os males e abusos de uma sociedade, mas toda a sociedade em si, incluindo alguns de seus valores mais liberais e humanos".

Começava assim o fechamento cognitivo das elites liberais ao populismo contemporâneo.

O livro de Robert Schneider não oferece nenhuma solução milagrosa para curar os ressentimentos políticos que se manifestam nas democracias ocidentais.

A sua proposta é mais modesta e, paradoxalmente, mais importante: em primeiro lugar, é um apelo para que essas emoções sejam reconhecidas como parte da experiência moderna.

O ressentimento não é uma deficiência dos outros –dos selvagens, dos imaturos, dos ignorantes. É uma emoção humana, fruto do próprio processo de democratização e do horizonte de possibilidades que esse processo inaugura (e frustra).

Os ressentidos não são "eles". Somos todos nós, com diferentes intensidades, em diferentes circunstâncias.

Em segundo lugar, se formos capazes de entender essa emoção, mais capazes seremos de entender e enfrentar os medos, as ansiedades e até as sujidades dos mais emotivos.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.