João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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O mundo treme com nariz de Bradley Cooper e tapas íntimos de Napoleão

Críticos fecham os seres humanos em pequenos guetos de pureza

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1. Como se identifica um judeu? Não me pergunte, leitor. Pergunte aos críticos que não perdoam Bradley Cooper. O ator, no filme "Maestro", que ainda não estreou, deu corpo, voz e, parcialmente, nariz ao personagem de Leonard Bernstein.

Segundo os críticos, Bradley cometeu dois erros: aceitou o papel, apesar de não ser judeu, e aceitou a prótese de um nariz generoso, contribuindo assim para perpetuar esse clichê fisionômico (e racista) sobre os judeus.

Serei o único a ver nessas duas críticas uma contradição insanável?

Maestro
Bradley Cooper em cena de 'Maestro', da Netflix - Divulgação

Começo por judeus e não judeus. Há quem consiga distingui-los. Os antissemitas antigos, por exemplo, falavam em narizes, barbas, cabelos ondulados, lábios grossos, às vezes uma ocasional corcunda.

Os nazistas, nos seus delírios genocidas, preferiam o sangue. E até elaboraram umas leis pseudocientíficas para decidir quem era ou não era judeu.

Minha cegueira é total. Sou português. Lá atrás, deve haver judeus na família, que se converteram ao cristianismo para não darem trabalho à Inquisição. Resultado?

A menos que o sujeito me informe que é judeu, não há nada nele que me revele essa identidade.

Sou pouco sofisticado, admito. Porque os críticos que preferiam um judeu no papel de Leonard Bernstein devem conseguir ver algo de especificamente judaico nos judeus que me escapa. O que será? O nariz?

Não, mil vezes não! Essa, aliás, é a segunda crítica: ao usar uma prótese para aumentar a protuberância, Bradley Cooper cedeu à caricatura antissemita.

Artefato de disfarce lúdico formado pelo combo de nariz postiço, bigode, óculos e sobrancelhas falsos se repete em composição pop, ora em vermelho, ora em preto.
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 21.ago.2023 - Folhaspress

O nariz do ator chegava e sobrava para retratar Bernstein, acrescentaram eles, apesar de a família do maestro ter vindo publicamente defender Bradley Cooper, afirmando que Bernstein, de fato, tinha um nariz "belo e grande".

No fundo, os críticos não se decidem: por um lado, só querem judeus a representar judeus; por outro, afirmam que não há nada de distintivo nos judeus.

Por um lado, voltam a racializar os seres humanos, fechando-os em pequenos guetos de pureza e impedindo qualquer contaminação por raças estranhas; por outro, não admitem qualquer racialização, que logo criticam como racista, mesmo que o nariz em causa não tivesse essa intenção.

Felizmente, essas modas não existiam no passado. Só isso explica que Dustin Hoffman, um ator judeu, tenha representado Ben Braddock, personagem gentio, no "The Graduate – A Primeira Noite de um Homem", de Mike Nichols.

Sorte a tua, Dustin! Se os críticos de agora já existissem em 1967, jamais terias conhecido mrs. Robinson com certo grau de intimidade.

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Dustin Hoffman e Anne Bancroft em cena do filme " A Primeira Noite de Um Homem" - Divulgação

2.

E por falar em intimidade: Ridley Scott resolveu levar Napoleão às telas. Ainda não assisti ao filme, mas grupos de ativistas pelos direitos das mulheres já tiveram o privilégio.

Segundo o "Daily Telegraph", não gostaram das cenas "calientes" entre Napoleão (Joaquin Phoenix) e Josefina (Vanessa Kirby). O imperador, na versão de Ridley Scott, dá uns tapas à sua mulher em pleno ato sexual. Não estaremos a romantizar a violência doméstica, perguntam as ativistas?

Deus me fulmine se eu sei. Embora, aqui entre nós, violência doméstica para descrever certas acrobacias de alcova pode ser um excesso de zelo. Ou, como diria Gore Vidal, podemos ser a favor do chicote, desde que ele seja usado entre adultos que consintam.

Além disso, as informações que nos chegaram da relação entre ambos estão longe das etiquetas modernas. Prova disso é a célebre mensagem que Napoleão enviou a Josefina depois de mais uma campanha militar: "Regresso amanhã a Paris. Não te laves."

Seja como for, consola saber que, no ano da graça de 2023, aquilo que mais impressiona na biografia de Napoleão não é a violência com que subjugou a Europa e o Oriente Médio, mas os tapas íntimos a Josefina. Moral da história?

Sim, você pode ser um ditador, matar milhões em guerras imperiais de conquista, pilhar territórios e até reinstaurar a escravidão, tal como Napoleão o fez nas colônias, revertendo uma das conquistas mais solares da Revolução Francesa. Desde que, obviamente, seja um exemplo de retidão entre os lençóis.

Alguém deveria avisar o camarada Putin, antes que seja tarde.

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