João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho
Descrição de chapéu maternidade

As histórias de Paris e da cegonha já não funcionam faz tempo

Homens e mulheres apaixonam-se, dão muitos beijos, seus corpos produzem muito calor e o bebê cresce na barriga da mãe

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Meu filho quis saber como se fazem bebês. Tem 9 anos. As histórias de Paris e da cegonha já não funcionam faz tempo.

Nunca funcionaram, razão pela qual optei sensatamente pela verdade: homens e mulheres apaixonam-se, dão muitos beijos, seus corpos produzem muito calor —e o bebê cresce na barriga da mãe.

Cegonha voando, com asas bem amplas, em meio a uma revoada de espermatozóides
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 25 de junho de 2024 - Angelo Abu/Folhapress

Esta explicação térmica aguentou alguns anos, mas também gerou angústias: se ele beijasse uma menina na escola e sentisse calor no processo, eu seria avô?

Tranquilizei-o. "É preciso mais que calor", acrescentei, na esperança de encerrar o assunto. "Mas o que?", insistiu ele. Pensei uns segundos. "Permissão para dirigir".

A mentira comprou dois anos de paz. Mas agora ele queria saber os detalhes técnicos da coisa.

Por deformação profissional, fiz o que sempre faço: corri para a livraria. "Você tem algum livro que ensine como se fazem bebês?", perguntei à moça.

Ela olhou para mim e pronunciou as palavras mais trágicas da história da humanidade, depois da conhecida frase de Abraham Lincoln naquela noite de 14 de abril de 1865, em Washington ("Sinto uma vontade louca de ir ao teatro!"). As palavras foram: "Um livro para adultos?"

Olhei a moça com uma mistura de pasmo e compaixão. "Eu acho que os adultos já sabem", concedi. "Estou procurando um livro para crianças."

Havia. Escrito por Anna Fiske e apresentado como "bestseller internacional", o título é "Como Se Faz um Bebê" e o conteúdo não desilude.

Começa em tom humorístico, com perguntas ao leitor inocente. Os bebês fazem-se com químicos perigosos? Com martelo e pregos? Com a ajuda da cegonha?

Ou será com espermatozoides e um óvulo?

Para meu espanto, ele já sabia dos espermatozoides e do óvulo. A questão decisiva estava em saber como os primeiros viajavam até ao segundo. Que tipo de estrutura hidráulica, digamos, permitia esse "grand tour"?

Continuei lendo o livro para ele. É preciso haver amor, continuava a autora, uma novidade que deixaria uma parte do mundo de queixo caído. Falo daquela parte que pergunta, ou pelo menos pensa: "Tem certeza que é meu?"

O segundo ingrediente era a proximidade. Quanto mais amor sentimos, mais próximos queremos estar da pessoa amada. Até só restar a roupa, que será prontamente removida para quebrar a distância.

Começam as carícias. E os espermatozoides correm para o óvulo.

"Pai, você saltou uma página", reclamou ele, com uma atenção de águia no momento de colher a sua presa.

"Saltei nada."

"Saltou sim."

"Deixa eu ver."

Saltei sim. Na página, havia agora dois bonecos que se abraçavam e beijavam. Ele, peludo, com o órgão ereto e uma palavra sobre o penacho: "Olá!"

Ela, de pernas abertas, respondendo à saudação com um "Bem-vindo" inscrito por baixo da sorridente entrada.

Uma seta ligava o "Olá" ao "Bem-vindo", para ninguém se perder no caminho, e a descrição clínica complementava o desenho: "Se forem um homem e uma mulher, o homem introduz o penasjd na vageyfk da mulher..."

"Pai, não entendi nada."

Repeti as palavras, como se estivesse sofrendo um derrame: "... o homem introduz o penasjd na vageyfk da mulher..."

"O que você está dizendo?"

"Você está surdo, moleque?"

Decidiu ser ele a ler: "O homem introduz o pênis na vagina da mulher. Assim, ficam tão juntos quanto possível."

Ficamos ambos em silêncio, contemplando o par amoroso, e eu vejo alguns cabelos meus em queda suave à frente dos meus olhos.

"Era o que eu pensava", respondeu ele, como se tivesse confirmado uma hipótese que o fascinava há algum tempo.

E depois, com a mesma leveza de espírito com que leu a revelação sagrada, saiu correndo para o pátio onde o esperava uma brincadeira qualquer.

Fechei o livro. Fechei os olhos. E então lembrei-me do poema do meu compatriota António Nobre (1867 – 1900), "O sono do João", que o meu pai recitava quando eu era pequeno —e que eu sussurrava quando o meu João era pequeno também.

Começa assim:

O João dorme... (Ó Maria, diz àquela cotovia / Que fale mais devagar / Não vá o João acordar...)

Tem só um palmo de altura / E nem meio de largura: / Para o amigo orangotango / O João seria... um morango! / Podia engoli-lo um leão / Quando nasce! / As pombas são / Um poucochinho maiores...Mas os astros são menores!

O João dorme... Que regalo / Deixá-lo dormir, deixá-lo! / Calai-vos, águas do moinho! / Ó Mar! fala mais baixinho... / E tu Mãe! E tu Maria! / Pede àquela cotovia / Que fale mais devagar / Não vá o João acordar...

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