João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Há dissonância entre as preocupações dos trabalhadores e as prioridades da esquerda

Escolha de J.D. Vance consagra os republicanos como o partido da classe trabalhadora branca nos Estados Unidos

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Podemos dizer tudo sobre o Donald. Mas não é possível negar a sua esperteza política. A escolha de J.D. Vance como vice é o exemplo mais fulgurante. Ali está o herdeiro do trumpismo?

Certo. Mas esse não é o ponto. O ponto é que a escolha de Vance consagra definitivamente os republicanos como o partido da classe trabalhadora branca nos Estados Unidos. A mudança é tão sísmica como a transformação do sul segregacionista e democrata (até 1950) em bastião dos republicanos (depois de 1950 e até hoje).

J.D. Vance, senador republicano de Ohio e agora candidato a vice-presidente ao lado de Donald Trump, durante a Convenção Nacional Republicana, em Wisconsin
J.D. Vance, senador republicano de Ohio e agora candidato a vice-presidente ao lado de Donald Trump, durante a Convenção Nacional Republicana, em Wisconsin - Joe Raedle/Getty Images via AFP

Aliás, se dúvidas houvesse, bastaria ler as palavras de Trump justificando a escolha: "Os trabalhadores e agricultores americanos na Pensilvânia, Michigan, Wisconsin, Ohio, Minnesota e muito além" terão em J.D. Vance o seu defensor.

Trump sabe que, para ganhar a Casa Branca, precisa da Pensilvânia (primeiro que tudo) e depois do Michigan e do Wisconsin, que votaram em Trump (em 2016) e em Joe Biden (em 2020). Como reconquistar ambos?
Escolhendo um legítimo filho dessa América abandonada.

Perante isso, a pergunta é óbvia: como foi possível que a esquerda americana (e não só) tenha alienado assim a sua tradicional base de apoio?

O economista (de esquerda) Daron Acemoglu tenta explicar o suicídio em entrevista ao alemão Der Spiegel.

Para começar, os políticos da "terceira via" (Bill Clinton, Tony Blair, Gerhard Schröder) renderam-se às promessas fáceis da globalização, na esperança ingênua de que ninguém ficaria para trás.

Sabemos hoje que esse otimismo foi excessivo, sobretudo para os trabalhadores menos qualificados.
A automatização crescente na agricultura e na indústria, desde a década de 70, já tinha feito os seus estragos. A deslocalização de postos de trabalho para mercados emergentes foi o golpe de misericórdia para a classe operária ocidental.

A esse respeito, lembro sempre as palavras de Francis Fukuyama no importante "Liberalismo e seus Descontentes": "Poucos eleitores pensam em termos de riqueza agregada. Eles não dizem para si mesmos: "Bem, posso ter perdido meu emprego, mas pelo menos há outra pessoa na China ou no Vietnã, ou um novo imigrante no meu país, que está proporcionalmente em situação muito melhor".

De fato. O trabalho tem uma importância pessoal e comunitária que nenhum subsídio, nenhuma transferência da previdência social, consegue substituir.

Que o liberal Fukuyama tenha entendido esse fato, ao contrário de outros liberais, só aumentou meu respeito por ele.

Por outro lado, Daron Acemoglu acerta em cheio ao relembrar a grande substituição que os progressistas americanos (e europeus) promoveram: no lugar da classe trabalhadora, colocaram as elites intelectuais e suas agendas minoritárias. Resultado?

Uma dissonância cognitiva entre as preocupações dos trabalhadores e as prioridades dos partidos progressistas.

O caso da imigração é o mais eloquente: se a imigração sem restrições é percepcionada como uma ameaça pelos trabalhadores nativos pouco qualificados, o mesmo não acontece entre as elites, que até precisam de motoristas ou empregadas domésticas.

Sem surpresas, o tema desapareceu das conversas civilizadas. Só "fascistas", na encantadora linguagem da esquerda mais radical, se preocupam com a imigração descontrolada.

A mensagem de Acemoglu é simples e certeira: se a direita populista é um problema para a democracia, então a esquerda desertora terá de voltar a sujar as mãos com a "cesta dos deploráveis".

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