Joel Pinheiro da Fonseca

Economista, mestre em filosofia pela USP.

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Joel Pinheiro da Fonseca

Seu desejo é sua maldição

Massas em busca de certezas se entregam à vontade de um soberano

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Dar ao indivíduo aquilo que ele quer em todas as situações não é a receita para sua felicidade. É sua destruição. E, no entanto, a sociedade moderna se torna cada vez melhor justamente em entregar a cada um de nós, a cada segundo, aquela experiência que melhor satisfaz nosso desejo.

Nossos estômagos ilustram bem isso. A história da humanidade é, entre outras coisas, a história da luta contra a fome.

Diversas ricas culturas alimentares foram desenvolvidas pela transformação dos ingredientes disponíveis pela criatividade humana. Mas seu preparo exige tempo e sua fruição exige uma educação do paladar.

Eis que chega a junk food. Calorias baratas, imediatas e que não exigem formação nenhuma: satisfazem imediatamente os receptores de prazer do nosso cérebro, com doses maciças de sal, açúcar e gordura. O resultado é a obesidade e o diabetes. Passamos da fome ao empanturramento.

Hoje a tecnologia faz com a informação e a expressão o mesmo que já fez com a comida.

A internet deu acesso praticamente gratuito a toda a informação produzida (não importa o quão caro tenha sido alcançá-la) e as redes sociais deram a cada indivíduo um megafone para falar mais alto que qualquer canal tradicional, podendo ser recompensado de acordo com suas visualizações ou curtidas.

As instituições do saber e da informação —universidades, institutos de pesquisa, órgãos de imprensa— sempre tiveram inúmeros problemas, mas garantiam um mínimo de qualidade para a informação que era descoberta ou veiculada.

Justamente por ser a única a dominar os meios de difusão da informação, a grande imprensa profissional gozava de autoridade junto à opinião pública. A autoridade, mais do que de longos argumentos, vinha da falta de alternativas.

A crise que vivemos corrói a própria existência da verdade publicamente reconhecível. Não é que haja discordâncias profundas acerca das conclusões; isso é inclusive bem-vindo numa democracia vibrante.

O que estamos perdendo são os critérios comuns mínimos que permitem distinguir o verdadeiro do falso de uma maneira que todos aceitem e que possam, aí sim, discutir.

A informação verdadeira nem sempre agrada. Quando ela contraria nossas preferências, o mais fácil é procurar outra. E hoje em dia sempre haverá outra.

Se você não gosta de espinafre, tem sempre um pacote de bolachas te esperando. Haverá alguém em busca de sucesso criando conteúdos sob medida para você (mas a realidade objetiva, e não nossos desejos, deveria ser a régua do conhecimento), assim como a própria plataforma na qual você se move quer prender sua atenção para que você passe o máximo tempo possível nela.

A corrosão das velhas premissas comuns produz a sensação de guerra e instabilidade. Quando essa loucura em que estamos vivendo vai parar? Quando a guerra de "narrativas" chegará ao fim?

Para Platão, na "República", os excessos de igualdade e liberdade na democracia levam a sociedade às mãos de um tirano. É uma tentação do mundo atual.

Mas o líder tirânico, sob o manto da ordem, realiza uma troca nociva na estrutura social: substitui a lei e a ciência pelo arbítrio do poder. Instaura a realidade fictícia como única permitida.

Exauridas por uma realidade confusa e instável, as massas em busca de certezas se entregam à vontade de um soberano, que na verdade está tão perdido quanto elas, só é ainda mais desprovido de freios morais. Será isso que queremos?

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