Joel Pinheiro da Fonseca

Economista, mestre em filosofia pela USP.

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Joel Pinheiro da Fonseca

Direitos humanos no Qatar e aqui

Um posicionamento purista excluiria grande parte do mundo da possibilidade de sediar a Copa

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A Copa do Mundo no Qatar nos mostra a dificuldade de se efetivar um ideal —no caso, os direitos humanos e a democracia— num mundo integrado e, até onde possível, pacífico.

A pauta dos direitos humanos —o estabelecimento de certas prerrogativas individuais que todo Estado deve garantir a seus cidadãos e a estrangeiros— bem como a democracia liberal, o regime político baseado no voto universal soberano, mas limitado justamente pelos direitos básicos invioláveis, é o grande legado do pensamento iluminista e liberal para o mundo. E se mostrou de tal forma benéfico para as sociedades que hoje nós, brasileiros, temos dificuldade de pensar fora deles.

Protesto em Berlim contra a realização da Copa do Qatar - John MacDougall - 20.nov.22/AFP

É fácil defender pura e simplesmente que o torneio não seja realizado em ditaduras; mas por acaso adotamos a mesma postura quando foi a vez da China e da Rússia? Dentro do mundo muçulmano, o Qatar não é nem de longe o regime mais repressivo ou ditatorial.

Por fim, há a possibilidade de que a realização do Mundial sirva também para abrir o país mais ao mundo e aos valores de pluralismo, igualdade, liberdade e democracia que ele, até hoje, tem desprezado.

Um posicionamento purista excluiria grande parte do mundo da possibilidade de sediar a Copa —e, infelizmente, mesmo nossa América Latina teria dificuldades. Viveríamos num mundo melhor se apenas Finlândia, Nova Zelândia e Suíça sediassem o campeonato? E mesmo essas têm seus esqueletos no armário.

Pela régua dos direitos humanos e da democracia, ninguém é perfeito. Os próprios países que hoje servem de vitrine desses valores têm suas contradições e até violações egrégias em sua história recente. Quem esquecerá que, já no pós-guerra, uma nação civilizada e democrática como a Inglaterra foi capaz de submeter um gênio como Alan Turing à tortura do eletrochoque pelo simples fato de ser homossexual?

Mas do fato de que ninguém é perfeito não se segue que todos sejam igualmente maus. Mesmo assim, é inegável que, hoje, a Inglaterra é um lugar muito mais acolhedor para um homossexual do que o Qatar, a Arábia Saudita ou a Rússia.

Num mundo em que os países podem se autodeterminar e no qual queremos estabelecer relações pacíficas, não há como evitar fechar acordos e negociar em bons termos com regimes cujas práticas negam frontalmente os valores que consideramos mais importantes.

Ter relação amigável com o Qatar ou com a China não significa aprovar suas formas de governo. Há um abismo de distância entre defender uma relação pragmática e mutuamente benéfica —sabendo que não temos nem o direito nem muito menos a capacidade de alterar sua política interna— e tornar-se apologista do regime.

Mais preocupante do que regimes que nunca aderiram ao ideário iluminista de ciência, democracia e igualdade, são as vozes internas às democracias liberais que negam a universalidade dos direitos humanos. Hoje em dia elas vêm mais da extrema direita, mas há uma extrema esquerda saudosista do stalinismo e apologista do regime chinês e da Rússia que está igualmente empenhada.

E o primeiro passo é sempre o sofisma da relativização: se um país não é perfeito, então todos são equivalentes. China e EUA, Rússia e Reino Unido, Coreia do Norte e Suécia. Sim, o mundo é complexo. E sim, seria um erro tentar forçar todos os países a aderirem à democracia e aos direitos humanos à força.

Mas basta olhar para a proibição da homossexualidade no Qatar e para as mulheres obrigadas a usar véu para saber que não é tudo equivalente. Está bem claro qual é o melhor regime, ainda que o "como" chegar lá permaneça sempre complexo.

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