O encontro casual na serra do Mar entre correntes úmidas e quentes da Amazônia e uma frente fria do sul do continente despejou em um curto período de tempo a enormidade de 600 mm de água em forma de chuva (o equivalente a 600 litros por metro quadrado) em algumas cidades do litoral norte de São Paulo. As consequências foram trágicas, sobretudo em vidas perdidas e sofrimento, mas também materialmente.
Eventos climáticos extremos se repetem há anos, aqui e ali, cada vez mais intensos, mas somos incapazes de aprender com eles, de fazer a relação causa-efeito, focados que estamos em nossas vidas individuais, na sobrevivência imediata, no consumismo e nas lutas de poder. O modelo se impõe e a ordem é produzir e consumir: o resto, a gente vê depois.
Ainda chamamos esses eventos de "desastres naturais", como se fossem uma fatalidade inevitável, como se não tivéssemos nada a ver com isso e a grande responsável fosse exclusivamente a natureza. E assim lavamos as mãos e continuamos nos enganando e nos iludindo, achando que a solução não depende de nós. Preferimos fingir que tudo é natural e, desta forma, encobrir nossa responsabilidade na escolha de um modelo de desenvolvimento predador, que consome recursos naturais sem limites e que recebe respostas cada vez mais contundentes da própria natureza, que não sabemos interpretar.
Enquanto isso, os que têm poder político e econômico —e são os maiores responsáveis pelo aumento desses eventos climáticos extremos— buscam lugares protegidos nos seus países e no mundo, na ilusão de que poderão escapar incólumes. Poderão até ganhar um tempinho, mas não mais do que isso. Seria melhor enfrentar de frente o problema: Freud explica o processo de negação.
A falta de consciência da maioria dos governos, empresas e sociedade em relação às mudanças climáticas e seus impactos faz com que tragédias como a ocorrida neste final de semana se repitam com mais intensidade e velocidade. Há décadas os dados evidenciam que os eventos climáticos extremos vêm aumentando, e a reação, nas várias esferas de governo nacional e internacionalmente, não está à altura da gravidade do problema.
As emissões de gases de efeito estufa (CO2) batem recorde ano a ano, em que pese as metas do Acordo de Paris de 2015, que obteve o compromisso de redução de emissões de 193 países do mundo. Mas a nossa incapacidade de ações coletivas globais foi comprovada na distribuição de vacinas durante a pandemia, quando se observou que, enquanto alguns poucos países vacinavam a quarta dose, a maioria do mundo não aplicava a primeira.
Enquanto os interesses individuais de países e grandes setores econômicos estiverem à frente dos interesses coletivos, seguiremos vivendo tragédias, lamentando mortes, comovendo-nos, solidarizando-nos, chorando, mas sem mudanças estruturantes que previnam sua repetição. Esses eventos climáticos violentos têm relação direta com as ações humanas e são resposta a um comportamento coletivo irresponsável e arrogante.
É importante fazermos essas conexões para que as escolhas e prioridades de ações sejam definidas considerando os impactos que provocamos no meio ambiente. Nesse sentido, governos e empresas têm papel fundamental. Os bancos, ao financiar projetos sem considerar o impacto ambiental de médio e longo prazos, têm responsabilidade nas tragédias que se sucedem. Os projetos de exploração de gás e petróleo na Amazônia, se avançarem, terão relação com as enchentes e deslizamentos dos próximos anos. O financiamento de projetos de exploração de gás de xisto, seja nos EUA ou na Argentina, tem relação direta com a mudança climática; os envolvidos em seu financiamento, também.
Por outro lado, ao assumir que o desmatamento no Brasil vai zerar até 2030, o governo sinaliza com que medida vai reduzir, no médio e longo prazos, a perda de vidas e de recursos materiais. A retirada de garimpeiros da Amazônia vai na mesma direção. A reestruturação do Ibama e da Funai, também.
É chegado o momento da consciência de que estamos interconectados e nossas tomadas de decisão têm impactos, sim! O consumo de produtos não certificados nas cidades, como carne, madeira, soja e ouro, tem relação com as tragédias. O desmatamento para a ampliação da fronteira agrícola e da pecuária, que chega à nossa mesa em forma de carne, em nossas casas como madeira de construção ou móveis, em nosso corpo em joias de ouro, tem relação com as inundações. Saber a origem do que consumimos e fazer escolhas conscientes é um dos fatores que podem contribuir na redução de impactos. Identificar empresas e financiadores, também.
As prefeituras precisam evitar a ocupação de áreas de risco e dar alternativas de moradia digna à população vulnerável. Podem e devem fazer compras públicas sustentáveis: a madeira das construções públicas deve ser certificada; os alimentos servidos nas merendas e refeições podem ser rastreados e livres de agrotóxicos; as áreas verdes, ampliadas; a frota de ônibus pode ser movida a combustível limpo; os lixões a céu aberto substituídos por aterros sanitários; a reciclagem de resíduos sólidos e a compostagem de orgânicos, universalizada; a redução da distância entre residência e trabalho, reduzida. O estado é responsável por um terço da economia e deve usar seu poder para induzir mudanças.
No mundo, temos o desafio de uma governança global que assuma o papel de dar diretrizes e controlar, com medidas vinculantes, obrigatórias, para atingirmos as metas de redução de emissões. Não dá mais para seguirmos no jogo de bem-intencionados. Necessitamos de compromissos climáticos vinculantes que, se desobedecidos pelos países, tenham graves consequências, pois esta irresponsabilidade coloca em risco a vida humana no planeta. E o que é mais grave do que isso? A relação entre perda de vidas, lágrimas e sofrimento devido ao desdém de governos e empresas precisa ser feita com urgência. Caso contrário, seguiremos secando lágrimas a cada tragédia, para acordar no dia seguinte, mal dormidos, tomar um café e seguir para a labuta diária até chegar a nossa vez.
Os morros descem. As casas vêm junto e, com elas, seus moradores: gente pobre e sofrida. É aqui que a desigualdade se encontra com o meio ambiente. É aqui também que elas se encontram com a reforma tributária, necessariamente progressiva, que taxe os super-ricos para poder dar condições de vida digna aos mais pobres, os 70% de trabalhadores que ganham até dois salários neste país que não se envergonha disso.
É aqui que a leniência da gestão pública local, ao permitir assentamentos em áreas de encostas e de risco, se encontra com a injustiça social. É aqui que as fake news se ligam com a tragédia ao criarem realidades paralelas para manipular pessoas e induzi-las ao voto em aventureiros de plantão, os mesmos que mantêm esse estado de coisas. É aqui que as redes sociais que nos exigem textos curtos reduzem nosso repertório e capacidade de crítica e compreensão.
Desigualdade, meio ambiente, economia e política são irmãs siameses, intricadas na mesma origem de um estado patrimonialista e com marcas ainda não superadas da escravidão, que insiste em viver de favores, de emendas secretas, de sigilos centenários vergonhosos. Uma das consequências disso tudo é o que vivemos neste final de semana.
Até quando seguiremos nessa caminhada individual insana, desprezando o presente que ganhamos da natureza em forma de razão e emoção, em vez de fazer desta experiência humana algo que valha a pena afetiva e coletivamente? É tempo de mudança.
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