Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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Jorge Coli

Cartas de 'O Gabinete Negro' formam joias de denúncia contra burguesia

O ódio aos burgueses tornou-se quase um verdadeiro gênero literário e artístico

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A burguesia, alta, média ou pequena, mimetiza, como pode, afetações de requintes aristocráticos que soam falsos. Reduzem-se à ostentação de riqueza por meio de emblemas nada finos: grifes, vinhos caros, carrões e toda a arrogância que o dinheiro pode pagar.

Cada escolha, cada gesto, cada sentimento tem por base o interesse financeiro, e basta raspar um pouquinho as aparências para que o motivo, verdadeiro e sórdido, apareça. A cultura, quando surge nesse quadro, é uma ostentação, nunca algo de essencial.

Há quem escape, felizmente, graças a histórias individuais imprevisíveis. Mas a regra situa o burguês entre o ridículo e o odioso.

O ódio à burguesia tornou-se quase um verdadeiro gênero literário e artístico. Mário de Andrade gritava na juventude de sua "Paulicéia Desvairada": "Eu insulto o burguês!".

É dela que Émile Zola faz o retrato malcheiroso em "Roupa Suja" ("Pot-Bouille", no original. Falando em Zola, como é possível que não exista hoje, disponível em português, a série completa dos "Rougon-Macquart", grande saga épica da abjeção social no século 19?). Luís Buñuel retratou sem piedade essa hipocrisia, em seu onírico "O Charme Discreto da Burguesia".

Assim é a veia de "O Gabinete Negro", livro de Max Jacob, poeta francês, que a editora Carambaia acaba de publicar.

Jacob foi um dos inventores da modernidade nas primeiras décadas do século 20. Judeu, converteu-se ao catolicismo. Batizado em 1915, seu padrinho era Pablo Picasso. Em 1916, Modigliani pintou-lhe o retrato.

pintura de Max Jacob feita por Modigliani
Max Jacob (1876-1944) retratado por Amedeo Modigliani - Divulgação

Teve um trágico final de vida. Durante a Segunda Guerra Mundial, seu irmão e irmã foram enviados à câmara de gás. Ele também foi preso em 1944. Tinha 68 anos e sua saúde era frágil. Morreu antes de ser transportado pelos alemães ao campo de Auschwitz.

Max Jacob inventou o dadaísmo antes do dadaísmo e o surrealismo antes do surrealismo. Criou a forma dos "poemas em prosa" e seu livro "O Copo de Dados" teve enorme sucesso. Junta o cotidiano banal, a estranheza onírica e a emoção inesperada: "Enquanto eu descia a rua de Rennes, mordia no meu pão com tanto sentimento que parecia ser meu coração que eu rasgava".

Gabinete negro significa, na França, uma repartição em que se liam cartas de pessoas vigiadas antes que chegassem ao destino. Criado no mesmo momento que o serviço de correios, no início do século 17, de certo hoje se modernizou, interceptando telefonemas e comunicações pela internet.

Mas o livro de Jacob com esse título não se refere a segredos de Estado. Reúne cartas fictícias, às quais acrescenta algumas poucas que seriam verdadeiras. Elas são corriqueiras e hilariantes.

Oswald de Andrade era um fervoroso leitor de Max Jacob, e me parece fora de dúvida que, sem ele, em particular sem seu "O Gabinete Negro", cuja primeira edição data de 1922, nem João Miramar nem Serafim Ponte Grande existiriam.

Às cartas, Max Jacob acrescentou comentários, como se fosse o censor. Essa forma dupla levou a editora Carambaia a inventar uma editoração particular. Raras vezes a solução gráfica me causou tanto prazer. As anotações "secretas" se oferecem de modo misterioso, dentro de páginas dobradas, cor de lilás escuro. Isso aumenta bastante o gostinho de voyeurismo espião.

As vítimas de Jacob são gente da classe média mais baixa ou mais alta. Pertencem à burguesia de cidades muito provincianas e caipiras, como Guéret ou Digne, a mesma burguesia à qual Claude Chabrol consagrou seus filmes corrosivos.

O livro se abre com um pai que repreende o filho por causa de suas reprovações na escola, anunciando que vai cortar-lhe a mesada.

Descobrimos, no final, as reais intenções: "Não me interessa dar dinheiro a meu filho para que ele se divirta com as mulheres que conheceu junto comigo e que, mais ou menos, são minhas". E acusa: "Você faltou ao respeito devido a um pai".

Os comentários trazem as reflexões do rapaz: "O papai não chegará a ficar velho levando a vida que leva. Sou herdeiro universal, não tenho necessidade de me esfalfar".

Cada carta, com seu comentário, forma joias de denúncia viperina contra a burguesia. A tradução, que pressupõe grandes variações de estilo, é magistral e exemplar.

Foi realizada por Luiz Dantas, que soube encontrar os mais perfeitos equivalentes para a linguagem de um caixeiro-viajante, de uma princesa russa, de um documento medieval.

Um bom posfácio de Pablo Simpson nos ilumina ao terminarmos a leitura do livro. "O Gabinete Negro" é um genial exercício de prazer inteligente.

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