Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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Jorge Coli

Projeto de Bolsonaro de terra sem lei lembra faroestes americanos

Mito épico de Hollywood, ao contrário do Brasil bolsonarista, se preocupa com a justiça e com a moral

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"Tanto a vítima quanto o autor ficam por cerca de três a quatro minutos um apontando a arma para o outro e ambos verbalizando baixe a arma, baixe a arma [...]. Até que o agente penitenciário efetua ele os primeiros disparos contra a vítima."

A descrição da delegada faz pensar nos momentos mais tensos do faroeste. Dois pistoleiros se defrontam para o duelo. Quem saca a arma primeiro é o agressor. O outro, o mocinho, tem que ser rápido no gatilho e atirar com precisão, matando o bandido.

Homem de costas com uma camisa pólo branca com desenhos de uma arma, um coração e uma cruz nas costas escrito pró-armas, pró-vida, pró-Deus
Apoiadores de Jair Bolsonaro protestam a favor do porte de armas em Brasília - Adriano Machado/Reuters

O paralelo dessa história trágica com o western ajuda a compreender o projeto bolsonarista, que vem sendo imposto ao Brasil: o da terra sem lei, o mesmo que caracterizou o mito do oeste americano, colonizado no século 19.

O pistoleiro do oeste precisa de sua arma porque ali não há lei ou porque ela não é cumprida. Estamos na fronteira da sociedade organizada, nos seus limites incipientes. Nela, é o indivíduo que ataca, é o indivíduo que se defende.

Bolsonaro quer isso: um país sem regras e sem leis, em que tudo fique nas mãos dos mais poderosos e dos mais violentos. Um país em que todos estejam armados, porque não há princípios nem polícia para defendê-los.

Bolsonaro deseja um mundo em que milicianos, bandidos dominem, ditando e impondo a ordem que querem. Um Brasil maquinado à imagem do que já ocorre em comunidades geridas por criminosos.

A diferença entre o mito épico do oeste americano, fabricado pelo cinema, e a concepção de Bolsonaro para o Brasil é que o primeiro se preocupa com a justiça e com a moral. Naquele mundo em que o indivíduo é entregue a si mesmo, nasce o herói solitário, o caubói generoso e justiceiro, que muitas vezes deve enfrentar mandantes poderosos para que os maus sejam castigados e os bons, premiados. Clint Eastwood construiu, ao longo de sua carreira, o perfeito tipo desse pistoleiro.

Bolsonaro sabe que, no real, esses heróis defensores do bem não existem. O seu é um western do mal. Quanto mais desmonta os suportes institucionais, as regras da sociedade organizada que garantem o funcionamento democrático, mais a sua concepção de mundo se fortalece e se espalha.

Bolsonaro dissolve a legalidade. Age para instaurar a ilegalidade plena. São as "boiadas que passam", são os ataques às urnas eletrônicas, são as ameaças de golpe, são as PECs infames que corroem a constituição para que ele seja reeleito, o orçamento secreto, os sigilos de cem anos para documentos que o condenariam se, no futuro, ele e sua família se encontrem em má situação. É a exaltação das armas, é a polícia descontrolada e matadora. Tudo isso orquestrado para que o homem vire o lobo do homem.

O assassinato na festa de aniversário de um tesoureiro do PT tem um claro mandante: Jair Messias Bolsonaro. Sua pregação pelo extermínio dos adversários, entendidos como inimigos de guerra, o "vamos fuzilar a petralhada" lançado como palavra de ordem, o gesto da arminha (pensar que o bolo de aniversário de Eduardo Bolsonaro, dois dias depois do assassinato em Foz do Iguaçu, foi feito em forma de arma!), tudo conduziu para a incitação ao crime. Não é assassino apenas aquele que puxa o gatilho.

A rápida conclusão do inquérito pela Polícia Civil do Paraná, afirmando que não houve motivo político para o assassinato, é um insulto à inteligência de qualquer ameba e um documento da mais indigna subserviência. Ao reduzir o crime à reação do assassino à terra jogada no seu carro, a polícia dá uma justificativa ao agressor (ele foi provocado). O ato teria se originado por "motivo torpe": mas há um motivo, portanto.

Desse modo, a conclusão exclui a evidência indiscutível de um crime político, motivado por convicções políticas. Inocenta, portanto, o assassino que nos governa. É mais um modo, esse sim muito torpe, de enfraquecer a legalidade que deveria imperar enfrentando objetivamente os fatos.

Bolsonaro foi eleito ilegalmente. Não por causa das urnas eletrônicas, está claro, mas porque o candidato que o venceria foi sequestrado ilegalmente e posto na cadeia, de novo, no Paraná: há coincidências terríveis.

Bolsonaro elegeu-se graças a um surto coletivo de ódio. Teve como oponente um professor de universidade, que ama os livros e a educação, lúcido, sem mancha nenhuma em sua carreira.

Infelizmente, aqueles não eram tempos de lucidez.

Fernando Haddad conseguiu, ainda assim, um resultado expressivo, com uma diferença aproximativa de apenas dez pontos percentuais. Não bastou para impedir o Brasil de se tornar o imenso faroeste do mal que vivemos agora.

Esperemos mais serenidade neste ano. Quem sabe o caminho de uma reconstrução moral, social, econômica do país volte a ser possível. Há perspectivas bem plausíveis: Lula na presidência, Haddad no Governo do Estado de São Paulo.

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