Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Jorge Coli

Democracias precisam de forças coletivas que dispensem heróis

Novo ano pode afastar forças políticas abjetas do horizonte brasileiro

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Alvíssaras. Palavra fora de moda, mas tão bonita. Penso nela neste início de ano, em que as perspectivas são um pouquinho mais luminosas. Desde 2019 que o início de ano se abriu para o mais escuro, 2020 e 2021 sendo os das trevas mais trevas.

A pandemia dá impressão de amainar. Apesar da ômicron, a população do Brasil parece se sair bem. Não foi atrás do cortejo antivacina que existe em outros países e que o presidente insiste em pregar. Com a população protegida, não é absurdo esperar um ano novo mais tranquilo.

O fim de ano passado trouxe a boa notícia das eleições chilenas. Esperança de que seja um sinal anunciando o recuo das forças políticas e sociais mais abjetas. Elas ameaçam o mundo e tripudiam no Brasil. Em 2022, há belas possibilidades de que essas negras nuvens se afastem dos nossos horizontes.

É verdade que outubro está longe, e só o diabo sabe o que pode ocorrer em eleições. No entanto, esse filme de terror que vivemos tem chances de terminar. O tempo é muito rápido depois que passa. Antes, como demora. Temos um ano ainda de barbárie desenfreada.

A obra "Litores entregam a Brutus os Corpos dos seus Filhos", de Jacques Louis David, de 1789, atualmente no Museu do Louvre, em Paris
A obra "Litores entregam a Brutus os Corpos dos seus Filhos", de Jacques Louis David, de 1789, atualmente no Museu do Louvre, em Paris - Divulgação

Os grandes quadros da Revolução Francesa, "O juramento dos Horácios", o "Brutus" fixavam em imagens o ideal de comportamento político. A ética do privado garantiria a ética pública. O grande homem público levaria à frente as belas ideias que tornariam virtuosa e feliz a humanidade.

Esses quadros e essa simbologia revolucionária mostram o sacrifício, do qual a morte era o supremo teste. "Liberdade, Igualdade, Fraternidade ou morte!" gritavam os revolucionários, assim como D. Pedro I gritou "Independência ou morte!". Mau sinal. É mais fácil morrer o indivíduo do que triunfarem as ideias coletivamente.

David pintou "Marat assassinado". Marat morreu para que seus ideais vencessem. Pura ilusão: morreu, perdeu. Ou melhor, é antes uma questão de tempo. As ideias não se encarnam na humanidade de uma hora para outra. A História é cruel pelas voltas que dá. O aprendizado é lento.

O desejo de uma rápida mudança social e política produz o demagogo. Uma condição, é que seja não muito conhecido; dessa maneira, pode-se atribuir a ele qualidades, poderes salvadores e todas as miragens. É a crença messiânica. Foi assim com Collor. Foi assim com Bolsonaro. Mito, gritavam. Nenhuma sociedade merece um salvador da pátria.

A questão não é Gabriel Boric como indivíduo. Não será ele o salvador da pátria, ninguém é. Nem se deve confiar 100 por cento em políticos. O essencial são as forças por trás dele, que se juntaram e terminaram por elegê-lo. Mais terrível do que o grotesco Bolsonaro, são as forças que lhe dão poder.

As pinturas revolucionárias de 1789 cristalizavam as nobres ideias em sua pureza rarefeita. Se esses ideais, no longo prazo, permitiram uma guinada para a humanidade em direção a uma lucidez maior, de imediato, fizeram funcionar a guilhotina como instrumento de limpeza ideológica.

Há algo muito ruim no princípio da pureza. Pelo menos quando se refere aos comportamentos humanos. Ela exige a eliminação e o desbaste. Ela opõe o puro, que se sente tão superior, ao impuro, que é indigno. Ao contrário, é a fusão que leva ao caminho fecundo.

Um chefe político pode ter as melhores ideias e intenções do mundo. Mas política é troca, negociação, por vezes bem malcheirosas. Esse fedor é inevitável quando se trata de democracia, em que interesses diversos, mesmo contraditórios, se manifestam. As mãos sempre se sujam

É necessário ser um bom jogador para ganhar nas partidas políticas. Há aí uma inevitável mistura de interesses individuais e de princípios, de convicções gerais. Muitos políticos se limitam ao oportunismo pessoal, está claro. Estes são os infames, os trapaceiros. Mas fazem parte do jogo também.

Depois de suas mortes, os heróis funcionam como símbolos na história por meio de convenções simples e diretas, de intenções claras e objetivas, que lhes são atribuídas, para que a vontade individual e coletiva possa se canalizar. Límpidos e nobres, os heróis são esplêndidos nos quadros revolucionários de David.

Ser herói é bonito, mas não resolve. O herói máximo exprime seu heroísmo com a morte. É eliminado. Deixa de atuar no presente, nos processos políticos imediatos. As democracias não precisam deles. Necessitam de belas forças coletivas que os dispensem.

Como todos, estou torcendo por um 2022 esperançoso. Será um ano duro, porque vamos amargar um governo que sacrificará tudo pelas eleições. No pior dos casos, se sucederá a si mesmo. No melhor, deixará terra arrasada para o sucessor. Sonhemos, porém, com boas notícias. Alvíssaras

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.