Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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Jorge Coli
Descrição de chapéu Filmes

'Pânico 6', ao contrário do que dizem os esnobes, é cinema de qualidade

Realizadores do longa, que retoma a angústia diante dos valores americanos, mostram amor sincero pela franquia de Wes Craven

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No início de "Pânico 6", a moça bonita está em um bar elegante. Ela fala no telefone celular e diz que é professora universitária. Mas não se envaidece com isso e logo minimiza sua posição: dá aula em um curso de cinema, apenas.

O pressuposto é que existem cursos considerados "mais importantes" —como matemática, medicina, engenharia— e que um curso sobre cinema é coisa secundária, que não deve ser levada a sério.

O personagem Ghostface em cena do filme 'Pânico 6', de Matt Bettinelli-Olpin e Tyler Gillett
Cena de 'Pânico 6' - Divulgação

Pior ainda: ela é especialista em filmes de terror, "slasher movies". Interrogada sobre o motivo de se interessar por uma coisa dessas, sua resposta menciona aspectos sociológicos que esse gênero pode manifestar.

Esta situação me parece marcadamente norte-americana, menos europeia, francesa sobretudo. Generalizo, e há muitas exceções. Mas os críticos e intelectuais dos Estados Unidos têm a tendência de filtrarem a percepção das obras por categorias sociais —o "highbrow" e o "lowbrow".

Se eu tenho consciência dessas categorias, se eu sou "highbrow", eu não posso gostar do que é produzido para o "lowbrow". Se eu estudo "slasher movies", deve ser por algum motivo elevado —como o sociológico— e não porque eu gosto desse tipo de filme. Na verdade, essa sociologia cultural serve como uma escusa, um álibi para amenizar minha culpa por gostar de algo indigno.

Os franceses não. A revista mais cabeça sobre cinema, mais "highbrow", Cahiers du Cinéma, nunca fez essa distinção, muito pelo contrário. Acompanharam com admiração a carreira de Wes Craven. Ao longo de sua história, ela nunca deixou de fazer parte larga a esse gênero.

A cultura tem suas poses. O esnobe valoriza a si próprio, pondo-se em uma postura superior, na plataforma que ele considera como prestigiosa. Necessita encontrar um inferior para depreciá-lo e engrandece-se com isso. Empregar a expressão cultura pop já contém, nela própria, o veneno do desprezo. Altas teorias baseiam-se em uma afirmação de si, ao enunciarem a oposição entre cultura erudita e cultura de massa, ao clamarem contra a "indústria cultural", a contraporem cinema de arte e blockbuster.

Qualquer historiador com um pouco de lucidez sabe que o brega de ontem pode ser o chique de hoje e vice-versa. Que a obra-prima pode virar pó e a obra reles tornar-se um portento. O tempo é danado para anarquizar valores e hierarquias. Deveríamos aprender a julgar as obras por elas, não por categorias prévias nem por indícios exteriores de bom gosto.

Se nem todo entretenimento é arte, arte é sempre entretenimento. Se não nos entretemos com uma obra, se ela não nos faz esquecer do tempo que passa, se ela não absorve nossa atenção, para que nos voltaríamos para ela?

Se eu não me entretenho com as cinco horas de "O Crepúsculo dos Deuses", de Wagner, por que ficaria ali, assistindo àquela história apocalíptica? Decerto, muita gente vai à ópera porque sente obrigação diante daquilo que é considerado uma produção superior do grande gênio e morre de tédio, mas aguenta, sem nenhum prazer nem nenhuma compreensão, por esnobismo cultural. Não possui as chaves, não se familiarizou com a obra, fica fora dela. Mas isso não quer dizer que um dos objetivos primordiais da obra não seja entreter. A cultura nunca é chata se penetramos de fato nela.

Como um jogo de beisebol, é preciso conhecer as regras e se interessar pelo que está acontecendo. Uma vez assisti a uma partida de beisebol para fazer uma cortesia a amigos norte-americanos e tentando sinceramente entender o que estava se passando: foram as quatro horas mais longas e mais enfastiantes de que tenho lembrança.

A arte depende da capacidade da leitura que possuímos dela. A leitura depende do interesse de que somos capazes, para captar, caso a obra ofereça, suas complexidades. O "highbrow", o cabeça, o esnobe irão ver "Pânico 6" com antolhos e passarão sobre o que ele pode oferecer.

Como os esnobes-cabeça-"highbrow" do passado consideravam "Psicose", "O Falcão Maltês", "O Homem que Matou o Facínora" como diversão desprezível, sem perceber a grandeza desses filmes: hoje, eles veneram Hitchcock, Huston, Ford como gênios. O que não os impede de desprezar Wes Craven, Tobe Hooper ou Jaume Collet-Serra, que ainda não entraram para o panteão dos doutos. Ou basta verificar o que o ocorreu com o cinema de terror italiano: desprezados e ignorados por décadas, esses diretores magistrais começam a fazer consenso entre cinéfilos que se querem intelectuais.

Tudo isso para dizer que "Pânico 6" é belo cinema, de qualidade. Ele é nutrido pelo vivido de filmes que formaram seus diretores, produtores e roteiristas, Matt Bettinelli-Olpin, Tyler Gillett (direção), James Platten Vanderbilt (produção e roteiro), Paul Neinstein e William Sherak (produtores), Guy Busick (roteirista): uma simpática e muito inspirada patota de nerds. Prolongaram a sequência de "Pânico", inventada por Wes Craven com um evidente amor sincero por ela. As homenagens são frequentes neste "Pânico 6" e, muitas vezes, explícitas, graças ao esquema "metashit" que está presente desde o primeiro. Impossível enumerá-las, de tantas que são.

"Pânico" sempre foi fruto de um amor imoderado pelo cinema, um cinema vivido por dentro, na pele de cada um, o que dá aos filmes da série a sinceridade que os torna superior. O grande santuário com relíquias e manequins dentro de um cinema abandonado é, em essência, a alma do filme.

Nessa última versão, a de número seis, o tempo é incorporado: há personagens descendentes de assassinos e de assassinados e a espessura do passado se concentra, visual e simbolicamente, na máscara materialmente envelhecida do Ghostface.

Sente-se também a presença de uma história do cinema: Hitchcock na janela percebida a partir de um apartamento, na travessia sobre a escada estendida entre dois prédios e em certas atmosferas, como o restaurante do início, a cena do metrô (um Hitchcock invertido: não é a multidão que salva o herói, bem ao contrário) e o apartamento de Gale Weathers. Outros cineastas históricos alimentam o filme, de Dario Argento (com uma forte presença e citado na camiseta de um personagem) a Fellini, Bergman ou Buñuel.

Esses cineastas já estavam lá, desde os primeiros "Pânico", de Craven. Salta aos olhos que o motor principal daquela patota de nerds criadores é prolongar a série, não a deixar morrer, continuando a matar, mas tudo com muito afeto. Eles retomam pontos cruciais dos "Pânico" ou de Craven, desde "Aniversário Macabro", de 1972, seu primeiro filme: a dúvida e a angústia diante dos valores americanos, particularmente o sistema familiar desconjuntado, vicioso e perverso, a solidão angustiada da "final girl", a pulsão primitiva que anima aquele vulto e aquela máscara.

O achado narrativo de "Pânico" é de fazer o vulto e a máscara como propulsor do mal. O assassino é intercambiável e pode se reatualizar sempre. Uma vez encontrada aquela feição branca que lembra Munch, muito marcante, ela passa a veicular a violência e a barbárie. Assim, os novos criadores de "Pânico" 5 e 6 podem vestir a fantasia: o público não deve ter medo do assassino, mas do diretor, disse uma vez Craven.

Aquela patota retoma uma fórmula, mas com um espírito que, forçosamente, se modifica. "Pânico" (2022), também de autoria deles, o primeiro da série que faziam, conservava uma proximidade mais tímida com o original. De fato, é como se o quinto "Pânico" e "Pânico 6" espelhassem "Pânico" e "Pânico 2", o primeiro mais tateante, o segundo, soberbo, mais desenvolto.

Mas, em "Pânico 6", esse espírito de derivação adquiriu distância, originalidade e, por assim dizer, mais suavidade: sacralização maior do próprio cinema como objeto de veneração, sentimento indulgente pelas vítimas e crueldade menor com elas, autoironia mais acentuada. As relações entre os personagens são aprofundadas, as personalidades muito delineadas, criando maior empatia com o espectador.

Há uma nova tecnologia: "Pânico 6" deve ser visto em versão 3D, e nas cadeiras que tremem, porque fica muito mais divertido. O que não impede a elegância estilística também, a fluência pensada e intuída. Mais acentuado que em "Pânico 4", o lusco-fusco de um "chiaroscuro" diverso da luminosidade cristalina dos outros —Caravaggio versus David Hockney. Nisso tudo, "Pânico 6" está no oposto de "Terrifier 2" (2022), de Daniele Leone, truculento, brutal, nojento, cujas qualidades são do tosco punk.

"Pânico 6", ambientado agora em Nova York, instila medo do espaço público, inquietante e ameaçador. Otimista, porém, acreditando na força dos laços afetivos pessoais. Adquiriu autonomia, mantendo-se fiel.

Não imita. Sem romper com o espírito original, respeita o legado se renovando. Satisfaz os fãs da série e a quem for vê-lo de maneira avulsa. Inscreve-se na atualidade e na nostalgia do cinema americano.

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