José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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Descrição de chapéu jornalismo

Jair, o jornalista, tinha um furo

Presidente usa a tal da mídia para vender propaganda como se fosse notícia

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Espera-se de um ombudsman que critique a Folha, mas é papel dele também analisar a mídia, seus agentes, assuntos e dilemas. A coluna, portanto, parte dessa premissa para comentar a atuação do presidente da República, na última semana, em uma aula pública de como não fazer jornalismo —leia-se, produzir fake news.

Na segunda (7), Jair Bolsonaro anunciou a apoiadores que tinha um furo em mãos. “Em primeira mão aí para vocês”, disse. Furo, no jargão da imprensa, é a notícia exclusiva, que você consegue na frente e publica antes que seus concorrentes. Animado com o seu furo, o presidente fez questão de dar a fonte da informação. “Não é meu. É do tal de Tribunal de Contas da União.”

Bolsonaro, muitas vezes, se considera ilegítimo como fonte de informação. “Não sou eu que estou dizendo” é uma frase frequente em seu discurso. Como todo jornalista sabe, ter uma origem qualificada para afiançar os dados de uma reportagem é o primeiro passo para um bom trabalho.

Ilustração de Carvall publicada na coluna Ombudsman do dia 13 de junho de 2021. Na imagem o presidente Bolsonaro está sentado à mesa e rabisca com a mãe direita o jornal.
Carvall

O selo de qualidade do TCU é largamente usado pela mídia nacional. Responsável por auditar as contas do governo, o tribunal é produtor natural de conteúdo de controle ao dissecar atos dos administradores públicos. Ou seja, até esse ponto o repórter Jair foi bem. Só até aqui, na verdade.

“Questionando o número de óbitos do ano passado por Covid. E ali o relatório final não é conclusivo [ponderação], mas em torno de 50% dos óbitos por Covid ano passado não foram por Covid [repetição para ênfase], segundo o Tribunal de Contas da União [confirmação].”

É mentira, o país inteiro já sabe. Brotou da mente e do computador de um auditor da corte, filho de um militar amigo de Bolsonaro, o jornalismo profissional não tardou a revelar. Naquilo que deveria ser um episódio de grande constrangimento, vivesse o país uma situação normal, o próprio TCU veio a público desmentir o presidente em comunicado oficial.

Na terça (8), Bolsonaro, de novo entre apoiadores, deu um “Erramos”: “O TCU está certo, eu errei quando eu falei tabela, o certo é acórdão”. Entendeu? Bem, a ideia não era fazer entender, mas registrar que aquilo que foi dito ontem não era exatamente aquilo, a despeito de haver um “indício enorme” de supernotificação de casos de Covid nos estados.

Mentira de novo. O país inteiro já sabe, também graças ao jornalismo profissional, que a hipótese mais provável é haver subnotificação da doença. O Brasil está longe de ser um Peru, que viu triplicar da noite para o dia o número de mortos após revisão de critérios, mas tem um salto de óbitos por SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave), contabiliza expressivo excesso de mortos e testa muito pouco.

As razões do funcionário, afastado de suas funções e sem acesso ao sistema e ao prédio do TCU, serão investigadas. As razões do presidente ao apurar e difundir algo que claramente não era factual são óbvias. Como bem descrito em um quadrinho de Adão Iturrusgarai, “mentira tem perna curta, mas dribla bem”.

Foi um escândalo o que aconteceu na semana passada. Jair, o jornalista, deu uma barriga, outro jargão do setor, este para notícia inverídica. Bolsonaro, o presidente, ganhou mais um documento apócrifo circulando nas redes para atestar que a mentira que ele disse parece verdade.

A Folha patinou na largada da novela, principalmente na edição protocolar da notícia. Errou ainda ao dar pouco espaço ao assunto na Primeira Página, na quinta (10), quando restou verificada a falta grave do servidor.

Não que o episódio tenha sido mais ou menos grave diante dos outros tantos que o mandatário produziu nos últimos dias. Em nenhum deles, porém, o mecanismo de manipulação ficou tão evidente.

O bolsonarismo é uma usina de notícias falsas, e o presidente das lives e das redes sociais, ocupando espaço da mídia e tratando propaganda política como notícia, se comporta como um concorrente dos veículos de imprensa. É preciso então tratá-lo como tal.

Pluralidade extrema

A entrada de Gabriel Kanner no time de colunistas da Folha dominou os comentários enviados ao ombudsman. O líder do Brasil 200 é um entusiasta do governo Jair Bolsonaro.

Em sua segunda coluna, criticou a “agenda de sexualização infantil” ao comentar a polêmica em torno da Escola Móbile, que adotou uma versão ilustrada do Diário de Anne Frank, com “passagens repugnantes”, autorizada pela Fundação Anne Frank.

A reação dos leitores foi forte, cobrando sobretudo coerência da Folha, pródiga em escolhas incômodas para sua vasta paleta de opiniões.

“A intolerância perante a intolerância fez com que os nazistas se tornassem célebres”, poderia dizer o ombudsman, repetindo a última coluna de João Pereira Coutinho. É mais fácil, porém, acreditar na seleção natural do jornal.

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