José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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O salto ornamental de Doria

Folha dá furo sobre a desistência de candidatura ao Planalto que durou horas

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Certas palavras e expressões, mesmo que traduzíveis, funcionam melhor no idioma de origem. "Diving" é uma delas. Não na acepção de mergulho, o significado direto, mas no futebolístico, o ato de se jogar dramaticamente na grama para reivindicar uma falta que não existiu. Brasileiros são tidos como especialistas na modalidade. Neymar é rei.

O idioma português não oferece correspondência exata para o termo. Alguém lembrará de simulação, de caráter técnico, ou cai-cai, este infantil, quase tolerante com a fraude. "Diving" em inglês também significa saltos ornamentais, o esporte onde a estética duela com a gravidade para, por alguns segundos, transformar em arte um corpo em queda. Quem salta da plataforma, no entanto, o faz sozinho, não é empurrado por ninguém. Eis o ferino humor britânico.

Quem se atirou às profundezas do relvado, na quinta-feira (31), foi o então governador de São Paulo, João Doria. No dia em que deveria transferir o cargo ao vice, Rodrigo Garcia, e se lançar de vez à corrida presidencial, Doria amanheceu resoluto de que a sua grande aventura política parava por ali. Como antecipou a Folha, no segundo grande furo do jornal nesta corrida presidencial (o primeiro foi o advento da dobradinha Lula-Alckmin), Doria avisara Garcia ainda na quarta que ficaria no Palácio dos Bandeirantes até o fim do mandato, ou seja, que desistira do Planalto.

(P.S.: Sérgio Ruiz, redator-chefe de Veja, entra em contato com a coluna para lembrar que a ameaça de desistência de Doria foi publicada pelo site da revista, no blog Maquiavel, já na madrugada de quinta-feira. Registro feito, agradeço a ponderação.)

Segundo a reportagem, replicada imediatamente e com créditos à Folha pela concorrência, Doria anunciaria também a desfiliação do PSDB, acusando caciques do partido de o terem traído. Somando tudo, implosão do principal palanque do partido no país, da candidatura Garcia e, muito provavelmente, da própria legenda.

Enquanto o alerta da notícia piscava na tela dos celulares, a versão impressa da Folha virava ficção antes do café da manhã. Na página A3, em Tendências / Debates, o nome de Doria encimava o artigo "Obrigado, São Paulo". "Cumpro o preceito legal, que determina a desincompatibilização do governo de São Paulo, para iniciar nossa caminhada rumo à Presidência da República", escreveu. Em contraste, Bia Doria, em entrevista no site, falava de alívio. "Quero meu marido de volta em casa."

Ilustração de cinco camisas polo, cada uma de uma cor. A camisa polo mais a esquerda em rosa claro tem um pequeno tucano saindo dela e voando. Nas outras quatro, há um tucano desenhado no lado esquerdo no peito; elas são amarela, azul petróleo, laranja claro e verde.
Carvall

Em manobra que considerei temerária, o jornal atualizou a reportagem que, na página A10 do impresso, apresentava o dia em que o governador viraria candidato, com resumo dos feitos de sua administração e desafios de campanha. Na crítica interna, indaguei se a Redação mudaria o texto mais uma vez se Doria recuasse do recuo. Horas depois, em construção equivalente, a Folha publicou em manchete que ele desistira de desistir.

No primeiro ato como ex-governador, Doria descreveu a turbulenta jornada como estratégia. "Não houve desistência, houve sim planejamento para que pudéssemos ter aquilo que conseguimos, o apoio explícito do PSDB." Quem acompanhou o noticiário percebeu que o resultado logrado durou pouco, como o furo da Folha.

Jornalismo é ingrato. Ao cumprir de forma competente seu papel, o jornal impôs o nome de Doria às manchetes do país durante boa parte de uma quinta-feira de movimentação política intensa, que também teve Sergio Moro abrindo mão de candidatura (nova moda, o ex-juiz desistiu de ter desistido na sexta-feira) e o presidente da República renovando suas ameaças à democracia. Uma vitória de Pirro do ex-governador paulista, traduzida equivocadamente como tropeço pela Primeira Página da Folha do dia seguinte. Tropeça-se sozinho, mas não por querer.

Doria mergulhou feio. Nem Neymar espirra tanta água.

Newsletter

A Folha tem uma newsletter que reúne os principais artigos da semana de acordo com as preferências do leitor. A seleção é feita por inteligência artificial. Na sexta-feira (1º), a primeira notícia da lista enviada a este ombudsman foi "Doria avisa que vai desistir de tentar Presidência e abre crise no PSDB". Aparentemente levará um tempo para o algoritmo entender que jornal, em ano eleitoral, é biruta de aeroporto no meio da tormenta.

Manchete

"Não há corrupção no meu governo", declarou Jair Bolsonaro mais de uma vez. Quando um ministro de Estado do seu governo é afastado por suspeita de corrupção, a Primeira Página da Folha estampa que um "Escândalo derruba Ribeiro do MEC". Na atual era de jornalismo de títulos, uma oportunidade desperdiçada.

E o Lula?

Leitores viram crítica ao PT em nota da última coluna. Comentava sobre o tratamento dado ao desfecho da novela Powerpoint e escrevi que o mea-culpa da imprensa viria junto com o do partido, nunca. A intenção era dizer que a imprensa exige dos petistas algo que ela mesma não se dispõe a fazer.

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