José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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Quando a lama bate à porta

Tragédia no litoral norte mostra como estamos longe do que parece próximo

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"O litoral norte é a região onde devem ser registrados os maiores volumes de precipitação, com possibilidade de até 250 mm neste final de semana." A frase com o alerta sobre o risco de fortes tempestades está no meio de um texto da Folha da manhã de sexta-feira (17), véspera de Carnaval.

Foi bem pior, mais de 600 mm de chuva, deslizamentos de terra, rios de lama engolindo casas, carros e gente, troncos de árvores arrancados e arrastados até a areia da praia. A tragédia do litoral norte de São Paulo culminou em dezenas de mortos e milhares de desabrigados na madrugada de domingo (19). Décadas de desprezo pela natureza, desigualdade e ausência do poder público revisadas em poucas horas de horror.

Das tantas descrições sobre o que era a área atingida, é fácil ficar com a do blog Cozinha Bruta, que sublinha a atuação de Eudes Assis, um dos tantos locais que não esperou a água baixar para entrar em ação em favor de sua comunidade. "O chef Eudes é caiçara e mestiço, criado na mesma paisagem magnífica que nós, paulistanos, invadimos para brincar de Havaí —expulsando as populações tradicionais para as encostas periclitantes."

O idílio de se ter à mão um North Shore brasileiro, que produz até campeão mundial, é um dos tantos detalhes que escapam a boa parte das coberturas da última semana. É curioso ler sobre lugares conhecidos, faz imaginar a quantidade de bobagens que escrevemos quando atuamos nos rincões. A familiaridade acusa erros, omissões e oportunidades perdidas. A Folha colecionou algumas nos últimos dias.

A iniquidade patente ganhou textos e análises, mas pouco se falou de uma certa precariedade cultivada. São Sebastião é um município de estrutura e serviços insuficientes nos dois lados da Rio-Santos. A diferença é que a parte rica se resolve sozinha, ainda que em graus e com bolsos diferentes. Tem praia com shopping, tem praia sem um único bar, tem praia com Abilio Diniz.

Ilustração de várias construções aglomeradas no centro da imagem e posicionadas em uma ladeira. Vários números aleatórios saem das construções em direção ao canto direito superior da imagem. As construções e ladeira são marrons e o fundo é preto, os números tem as mesmas cores, mas inversas em relação ao fundo.
Carvall

A Folha conta que Tarcísio de Freitas recusou a duplicação da estrada quando era ministro de Jair Bolsonaro. Mais faixas de rolamento é solução para a população local, que anda de bicicleta pelo acostamento, ou para os veranistas, que o invadem a bordo de SUVs na hora do trânsito do feriado? Que progresso se quer? O de uma Cancún, como um dia vaticinou o ex-presidente sobre a miliciana região dos Lagos?

O litoral norte é uma espécie de resumo do país, encurralado entre natureza, progresso predatório, emergência climática e abismo social. A ver se mídia e autoridades não abandonam a discussão assim que o sol reaparecer e o mar levar a sujeira da vez embora.

Só porque existo

Faça chuva ou faça sol, jornalista é jornalista 24 horas por dia. Em uma cobertura difícil, de acesso precário, quem está próximo do ocorrido é guindado ou levanta a mão. Renata Cafardo, repórter de O Estado de S.Paulo, referência em jornalismo de educação, levantou a sua no último fim de semana.

Na terça-feira (21), no caminho para o Sahy, a região mais castigada, Renata e o fotógrafo Tiago Queiroz passaram por Maresias. Ao registrarem imagens de um condomínio de luxo alagado, foram agredidos por um grupo de moradores. Aos gritos de "comunista" e "esquerdista", piada pronta em se tratando do Estadão, um deles tentou tirar o celular de Renata e, não conseguindo, a empurrou em direção a um alagamento. "Ele só parou porque o seguraram. Nunca passei por isso, não conseguia acreditar que ele ia me bater", conta. "Foi tão gratuito que às vezes parece que foi só porque existo, não por algo que fiz. Até porque eu não fiz nada."

Renata conseguiu chegar ao Sahy e é dela um dos primeiros relatos sobre a Vila Baiana, hoje Vila Sahy, a comunidade que se criou do lado errado da pista, formada por nordestinos que vieram para a construção civil ou para trabalhar como empregados. "Lá, com dezenas de mortos, onde as pessoas tinham muito mais razão para se sentir invadidas, nos ofereceram água e comida", relata. "Você entra numa cobertura dessas esperando enfrentar de tudo, mas não isso."

A Polícia Civil instaurou inquérito e três agressores já foram identificados. Ainda que na lama, jornalistas continuaremos existindo.

Golpismo explícito

Causou barulho a entrevista de Carla Zambelli à Folha, alcançando até a Flórida de pistas múltiplas onde se abriga Bolsonaro. Leitores se queixaram do espaço dado à deputada, mas recusar o contraditório é coisa para intolerantes, como o covarde da nota anterior. Se há reparo a fazer na edição do jornal é não ter destacado o golpismo da entrevistada, que chegou a dizer, com naturalidade, que "a gente tinha direito de se manifestar durante algum tempo contra o resultado". Isso não é direito, é subversão.

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