José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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A bolsonarização de Lula

Presidente começa a ganhar na mídia incômodos traços do antecessor

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Luiz Inácio Lula da Silva teve uma péssima semana, talvez a pior até aqui neste terceiro mandato. Adiou o lançamento da nova regra fiscal, bateu boca com adversários antigos, viu ministros se estranharem e medidas provisórias atolarem em um disputa de poder no Congresso. Ficou doente. Fez outras coisas também, lançou programas, mas boa parte ofuscada pelo seu próprio "falatório" ou "palavrório", como descrito por este jornal e seu principal concorrente.

Lula teve o azar, escreveu a Folha em editorial, de ter soltado a língua contra seu algoz na Lava Jato, Sergio Moro, exatamente antes da operação da PF que desarticulou uma conspiração do PCC contra o senador e outras autoridades. Exatamente depois de classificar o ocorrido como uma "armação" do ex-juiz, a língua do presidente queimou de novo com a decisão da magistrada do caso de levantar o sigilo da investigação e despejar detalhes para a imprensa. Azar não existe, mas quem sabe a apuração jornalística possa no futuro afastar ou confirmar coincidências.

Narrativas de lado, era sabido desde antes da eleição que o comportamento da mídia em relação ao presidente retornaria ao nível pouco amistoso dos primeiros mandatos e completamente degenerado durante a Lava Jato, pródiga na oferta de informação para a imprensa com timing e efeito estudados. A Vaza Jato mostrou mais tarde, em diversas oportunidades, que os luminares de Curitiba exaltavam o uso da mídia como forma de pressão sobre tribunais, políticos e delatores.

Parecia óbvio, também, que as decisões econômicas apartariam Lula, os jornais e a Faria Lima, dadas as agendas e as visões díspares de país. Já é o curso natural do noticiário: a Bolsa despencou na última semana só por causa do presidente, leu-se em quase toda parte, como se ele estivesse sozinho no ringue. Poucos relataram como política a decisão do Banco Central de emitir um comunicado duro para justificar a manutenção da Selic em patamar intolerável.

Isso tudo, em maior ou menor grau, era esperado. O que não estava nos planos é uma certa percepção que começa a se materializar de um presidente que lembra em alguns momentos o anterior. Lula, a anos-luz de Jair Bolsonaro, adquire contornos que remetem ao antecessor não pelo conteúdo, distinto, mas pela forma.

Ilustração de um chinelo com uma faixa na parte superior. Ele é azul marinho com uma listra verde e duas amarelas, mas foi pintado grosseiramente com pinceladas vermelhas. Ao lado do chinelo, há um homem branco vestindo camisa branca, gravata azul claro, calça marrom e sapatos marrons, cuja altura é semelhante a do chinelo. Ele segura um rolo de pintura com cabo longo e sujo com tinta vermelha. O fundo é branco.
Carvall

O processo começou com o diagnóstico já corrente de que o petista muitas vezes estaria falando para os seus. Como se o que estivesse pregando não valesse para os que não são seus, um dos tantos legados da falaciosa democracia direta de Bolsonaro. Ingrediente que faltava na receita, a grosseria surgiu na semana passada, quando Lula baixou o calão ao se referir a Moro em uma entrevista. O petista pode ter muitos ressentimentos, mas não o presidente da República. Confundir papéis também era notório em Bolsonaro, até mesmo depois de deixar o posto, como demonstra o episódio das joias das arábias.

Analistas então perguntam o que se passa, alguns arriscam explicações. Se o feio aparece no espelho, vale talvez rever suas escorregadas: prescindir de uma estratégia de comunicação e de um porta-voz; não entender que a franja que votou por opção, não por convicção, também lhe deu a vitória e merece cuidado. O bônus democrático dura pouco.

Copo meio cheio

É possível contar a mesma história de várias maneiras. "Dá tempo de frear crise climática e tecnologia já existe, diz painel do clima da ONU", escreveu a Folha na segunda-feira (20), com desbragado otimismo diante do último alerta do IPCC, o Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima. Segundo a reportagem, o próprio sumário-executivo do relatório "adota um tom encorajador".

Jornais internacionais pularam essa parte e foram bem mais sombrios em seus enunciados. The Guardian: "Cientistas entregam ‘aviso final’ na crise do clima: agir agora ou será muito tarde"; The New York Times: "Terra atingirá limiar crítico de aquecimento no início dos anos 2030, diz painel do clima"; The Washington Post: "Mundo está à beira de aquecimento catastrófico, diz relatório sobre mudança do clima da ONU".

A diferença se explica pela maneira como a crise do clima é encarada aqui e no exterior. Ainda que o assunto cresça no Brasil, no exterior é preocupação há tempos, inserido no cotidiano, no debate político e, por consequência, nas prioridades dos veículos de comunicação. Só que a diferença não se explica após a leitura, também na Folha, do texto "Bancada ruralista tenta reverter medidas de Lula e esvaziar ministério de Marina Silva".

Parlamentares ligados ao agronegócio ou que assim se apresentam parecem viver literalmente em outro planeta. Teria sido mais prudente a Folha modular seu tom otimista com o som ao redor.

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