José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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Quando a Folha assusta

Pauta liberal do jornal incomoda, mas será que só nos temas econômicos?

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Da "PEC da Gastança" do fim do ano passado à "medida abilolada" de taxar a exportação de petróleo no início deste mês, leitores da Folha já se acostumaram com um jornal de adjetivos contra o governo Luiz Inácio Lula da Silva. Ou não.

Muitos não se conformam com o tratamento hostil ao presidente, outros apelam ao ombudsman, sem falar nos que anunciam o cancelamento da assinatura. Há muitos pedidos de paciência com o petista, dado que os efeitos deletérios da era bozozoica ainda se farão perceber por muito tempo.

Há também um sentimento frequente de que a Folha está presa a algum tipo de compromisso neoliberal farialimer selvagem, traindo seu histórico de veículo transformador, modernizante, consolidador da democracia. Uma coisa não necessariamente exclui a outra, alguém notará, mas isso é detalhe. O jornal precisa decidir de que lado está, exige-se, sendo que um deles é o bolsonarismo, deixando o outro como única opção viável. Seria bom se fosse assim tão simples.

Ocorre que a pauta liberal deste diário não se resume aos temas econômicos. A última semana, marcada pelo 8 de março, trouxe um extenso e variado cardápio sobre questões de gênero, equidade, representatividade, feminismo, violência física, moral e digital. Com naturalidade foram discutidas pequenas e grandes soluções. A conveniência de adotar calções escuros no uniforme de jogadoras de futebol. A necessidade de alçar uma mulher negra ao Supremo Tribunal Federal no país em que uma magistrada de pele preta ouve "cadê a juíza?" ao entrar na sala de audiência.

(Semana não sem percalços, é preciso registrar. Na terça-feira (7), o jornal foi capaz de conceder um título para uma influencer oportunista que desejava "ser submissa ao novo namorado"; na quinta-feira (8), facultou ampla visibilidade na Primeira Página ao deputado federal transfóbico que, para aparecer, envergou uma peruca na tribuna da Câmara.)

Ilustração de um inseto preto cuja parte inferior do corpo é a ponta de uma caneta tinteiro. Uma linha azul com ondulações foi desenhada a partir do inseto. O fundo é branco.
Carvall

Tamanha opção pela diversidade, evidente na comparação de sua produção com as de concorrentes diretos, faz jus ao tal histórico transformador e modernizante, não apenas em questões de gênero. A Folha, neste momento, por exemplo, promove também a terceira edição de seu programa de trainees para profissionais negros. O jornal portanto é coerente com sua trajetória? Novamente, seria bom se fosse assim tão simples.

No mesmo 8 de março, um leitor escreveu ao ombudsman para reclamar do "absurdamente excessivo espaço que a Folha dedica a temas de raça, gênero e desigualdade". De uma cobertura que seria "repetitiva, que mostra alguns poucos casos, os generaliza, com excesso de peso ideológico".

Dias antes, outro leitor se queixou do que classificava como "proselitismo religioso". Comentava reportagem da Folhinha sobre uma influencer gospel e questionava a necessidade de o jornal ter colunistas dedicados ao universo evangélico. "Esse público, a quem vocês tentam tanto agradar, não lê a Folha e nenhum outro jornal tradicional. Pelo contrário: por conta disso, vocês estão perdendo assinantes de décadas." No Instagram, o tom das reações à matéria não era muito diferente. Alguém reclamava do "palanque para a Damares da nova geração".

Opiniões isoladas? Talvez. É razoável imaginar, no entanto, que também aqui possa ocorrer certa confusão entre uma concepção arraigada de jornal e os rumos que ele toma. Nem tanto pelas "pautas identitárias", como sublinha o primeiro leitor, mas pelo que a Folha está deixando de fazer. Por outros motivos, que vão de um orçamento apertado a novas e desafiadoras dinâmicas do jornalismo, a Folha está deixando de fazer muita coisa.

É imprescindível, porém, que prossiga no que mais importa no momento para esta sociedade desigual. É sua história.

Reportagem local

O título do site era uma espécie de genérico para tardes paulistanas: "Chuva causa morte, enchentes e desabamentos em São Paulo; CET suspende rodízio". O do jornal impresso chegava mais perto da tragédia: "Temporal alaga ruas e mata mulher dentro de um carro em São Paulo". A notícia aparece mesmo no foco mais fechado: uma mulher de 88 anos morreu afogada em Moema dentro do próprio carro. Para quem não é de São Paulo, Moema é um bairro de classe média alta, com ampla infraestrutura urbana, relativamente plano, o que torna o episódio absolutamente inusitado. Uma das coisas que a Folha está deixando de fazer é ter esse olhar local para sua própria cidade.

Em reportagem do dia seguinte, o jornal informou que a senhora era autossuficiente, cheia de vida e que tinha saído para comprar pão quando acabou presa na arapuca em que se transformou a rua Gaivota. O jornal falou com a família? Não, reproduziu postagem da neta em redes sociais. Essa é uma das novas dinâmicas do jornalismo.

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