É prudente prestar atenção quando os grandes jornais correm todos para o mesmo lado. Ou quando disparam em direções diametralmente opostas, fenômeno ainda mais raro, daí a relevância do ocorrido nesta última semana. Uma breve leitura dos editoriais de Folha, O Estado de S.Paulo e O Globo mostra como a digestão de uma polêmica decisão do STF sobre o trabalho da imprensa foi diferente em três das principais Redações do país:
"Capitaneados por Alexandre de Moraes, os atuais ministros do Supremo Tribunal Federal mostraram-se dispostos, na última quarta-feira (29), a inaugurar um capítulo sombrio na história da corte."
"A tese do Supremo, com todos os seus problemas, afinal serve para valorizar o jornalismo que respeita os mais elevados padrões éticos..."
"Foi positiva a decisão do Supremo Tribunal Federal que fixou uma tese para os casos em que veículos de imprensa publicam em entrevistas declarações com acusações falsas."
O primeiro e o último período são as aberturas de Folha e O Globo. O segundo é a conclusão do Estadão, que constrói seu texto em ritmo inverso, estratégia argumentativa típica. O copo, porém, fica meio cheio ao final, como no artigo do diário carioca. No da Folha está completamente vazio.
A diferença não é apenas de tom. Na tarde de quinta-feira (30), enquanto O Globo dizia que a Associação Nacional de Jornais "elogiou a tese", a Folha destacava da manifestação da entidade termos como "insegurança" e "falta de definição". A ANJ falou tudo isso, em declaração ponderada, mas os jornais aparentemente só leram o trecho que lhes interessava.
A partir de um caso muito particular, o Supremo decidiu que um veículo de comunicação pode ser responsabilizado na esfera civil pelas declarações de um entrevistado; se ele imputar falsamente um crime a terceiro; se à época da publicação houver indícios concretos de falsidade da informação; se o veículo não tiver observado o "dever de cuidado", nas palavras do STF, de verificar a veracidade dos fatos.
À leitura da Folha basta apenas a primeira oração: um veículo pode ser responsabilizado pelas declarações de um entrevistado. O rol de condicionantes "abre mais brechas do que fecha", escreveu o jornal, coerente com a defesa intransigente da liberdade de imprensa.
Aos concorrentes, pelas opiniões proferidas, as condicionantes trazem outros significados, como o respeito ao "caráter do jornalismo" e à "responsabilidade da imprensa".
Vem à lembrança o famoso New York Times v. Sullivan, em que a Suprema Corte dos EUA decidiu em 1964 que é preciso provar "actual malice", má fé na divulgação de uma informação errada, para se processar um veículo de imprensa. O Times havia errado, mas foi rápido e incisivo ao se retratar. Sem essa substância, não haveria a histórica decisão.
Estamos longe disso. Uma coisa é errar, outra é estar à mercê de ser processado pela opinião torta de um entrevistado. Como escreveu Luís Francisco Carvalho Filho, a "Justiça local, muitas vezes exercida por magistrados corporativistas e autoritários", é quem vai decidir esse tipo de coisa.
A não ser que o acórdão do julgamento, a cargo do ministro Edson Fachin, mostre-se absolutamente engenhoso, restaria elástico como quase tudo nesta terra o conceito de "negligência grosseira", régua usada pelo presidente do STF, Luís Roberto Barroso, ao indicar o presumido alvo da decisão.
Se tudo isso faz sentido para o cálculo realista da Folha, é ingênuo imaginar que a equação dos concorrentes se encerra em outra interpretação da sentença. Copos se enchem também por outras razões.
Em reportagem de repercussão do julgamento, outra estratégia típica nesses casos, a Folha ouviu críticos do STF, afetados pelas bolas que a retranca do TSE chutou para o mato durante a campanha eleitoral. Gente que aproveita a deixa para espezinhar os jornalistas, pois teriam concorrido para a mudança de governo. Contingência ou oportunismo, incluindo uma casquinha de Jair Bolsonaro em frase de recreio escolar, "estamos agora juntos com a imprensa".
É forçoso notar que, por motivo distinto ao seu, a posição da Folha encontra ruidoso respaldo de forças incendiárias, como o ex-presidente e aliados, que veem na liberdade de expressão e de imprensa salvo-conduto para barbaridades.
Vozes que agora, na pretensão do STF, encontrariam mais resistência para serem aceitas sem o devido contraditório.
Em levantamento oportuno, a Folha constatou uma linha de atuação da corte, seduzida talvez pela ideia de controle e responsabilização de usuários e redes sociais, equiparadas à "mídia tradicional" na legislação eleitoral, alteração que no TSE foi transformadora.
É sabido e, para muitos, justificável a excepcionalidade de 2022, com riscos à democracia. Agora é preciso afastar o risco da excepcionalidade, que é transformá-la em regra.
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