Josimar Melo

Jornalista, crítico gastronômico, curador de conteúdo e apresentador do canal de TV Sabor & Arte

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Josimar Melo

Pé na estrada, na tela

Na volta aos cinemas, vejo dois filmes de viagem e um Brasil que retrocede

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Entre as coisas que vamos voltando a fazer à medida que a pandemia arrefece está a ida ao cinema. O que fiz pela primeira vez, em meses, no final de semana retrasado.

Dois filmes em dois dias seguidos, aproveitando a 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. E, por mero acaso, ambos têm a viagem como tema condutor da ação.

O primeiro foi "Terra Estrangeira", de Walter Salles e Daniela Thomas, de 1995 —em cópia minuciosamente restaurada para comemorar os 25 anos de seu lançamento. O filme segue a trajetória de um jovem que, buscando realizar o sonho de sua mãe (uma imigrante do País Basco), parte para a Europa em direção a San Sebastian, enfrentando percalços que dão ao filme um recorte de thriller.

Fernando Alves Pinto e Fernanda Torres se abraçam diante de barco encalhado durante as filmagens de 'Terra Estrangeira' (1996) - Divulgação

No dia seguinte, foi a vez de "O Circo Chegou", de Paulo Caldas, que acaba de sair do forno. Também temos um personagem buscando voltar às origens, mas em tom de documentário: o proprietário do circo Spadoni, o mestre circense Zé Wilson, parte de São Paulo em caravana para levar sua trupe à sua cidade natal, Major Izidoro, no sertão de Alagoas, onde o Spadoni fora fundado por um tio seu.

Não é a primeira vez dos diretores em filmes com o pé na estrada. Com personagens viajantes, Salles dirigiu "Diários de Motocicleta", "Central do Brasil", "Na Estrada"; e Caldas, "Baile Perfumado" e "Saudade" (onde quem viaja são os sentimentos). Mas existe algo mais em comum entre "Terra Estrangeira" e "O Circo Voltou": o momento do Brasil na época em que ambos nasceram.

A história do filme de Walter Salles e Daniela Thomas se passa no início dos anos 1990, quando, na primeira eleição presidencial democrática depois da ditadura militar, o vencedor foi o nefasto Fernando Collor de Mello.

O filme mostra, em telas de televisão em preto e branco, o típico olhar desvairado do novo presidente anunciando seu pacote de maldades, explicado pela voz titubeante de sua ministra da Economia que detalha o sequestro da poupança da população.

Na vida real, um ano depois já estava falido o tal plano econômico (enquanto a quadrilha da Casa da Dinda se divertia em festas macabras); no filme, a investida tem efeitos trágicos na família do jovem Paco, liquidando o sonho de sua mãe de usar suas economias para voltar à terra natal.

No filme de Paulo Caldas, temos uma trupe que, sediada no estado de São Paulo, e tendo seu líder à frente de uma escola (o Circo Escola Picadeiro), luta para manter viva esta arte popular. Ao fazer o trajeto em direção ao sertão do Nordeste, a companhia atravessa o Brasil e vai parando pelos rincões, mostrando seu trabalho.

As paradas incluem apresentações em pequenas cidades e também em comunidades quilombolas e indígenas. Vemos desfilar nas telas um Brasil profundo, de gente simples, junto com um Brasil que resiste, de comunidades não apenas ignoradas como também perseguidas pelo tresloucado que —também com aquele assustador olhar psicótico— governa para sua quadrilha de milicianos e apaniguados, e não para o país.

Na época de "Terra Estrangeira", o governo Collor decretou, na prática, o fim das artes, a começar pelo cinema, que foi jogado à míngua num período sem recursos e sem apoio.

Agora novamente, na época de "O Circo Voltou", sob a tragédia de Bolsonaro, as artes não somente perderam recursos do governo federal, como também passaram a ser perseguidas por autoridades fascistoides e puritanas que têm horror à cultura, às liberdades e aos direitos humanos.

Nos dois filmes, o primeiro mais amargo, o segundo mais otimista, personagens pegam a estrada em fuga da tragédia que assola o Brasil, em busca de destinos mais merecidos.

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