Juca Kfouri

Jornalista, autor de “Confesso que Perdi”. É formado em ciências sociais pela USP.

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Juca Kfouri

Esgotos abertos da América Latina

Nosso continente continua muito abaixo do marco civilizatório também no futebol

Recorre-se aqui, novamente e a contragosto, ao título do livro do uruguaio Eduardo Galeano para falar da Copa Libertadores da América, mais especificamente da final não acontecida em Buenos Aires. Em vez de veias abertas, esgoto.

Se o jogo de ida entre Boca Juniors e River Plate teve de ser adiado pela chuva incessante a lembrar a Macondo de Gabriel García Márquez, agora foi a natureza humana mesmo que impediu a realização do jogo de volta.

Durante anos, desde 1960, quando começou a ser disputado o torneio continental, a Libertadores foi sinônimo de violência e selvageria.

Tocedores do River Plate entraram em confronto com a polícia de Buenos Aires.
Tocedores do River Plate entraram em confronto com a polícia de Buenos Aires. - Alberto Raggio/REUTERS

Então dopava-se à vontade e as torcidas se comportavam como hordas ensandecidas, a ponto de os campeões europeus, nos anos 1970, frequentemente se recusarem a atravessar o oceano Atlântico para jogar a Taça Intercontinental, principalmente na Argentina, onde os embates com o Estudiantes e o Independiente eram verdadeiras ameaças de linchamento.

Daí nasceu a iniciativa da Toyota, em 1980, de promover uma única partida no Japão. 

Verdade que os europeus estavam longe de ser exemplos de civilização, ou devido aos hooligans ingleses, ou por tragédias como a do Estádio de Heysel, na Bélgica, em 1985, quando 39 torcedores morreram em meio a conflito iniciado pelos torcedores do Liverpool contra os da Juventus.

O absurdo serviu para a Uefa proibir a participação de clubes ingleses por cinco anos em seus torneios, sob aprovação de Sua Majestade, a rainha Elizabeth.

Ingleses que gostavam de chamar os argentinos de “los animales de La Plata”.

A diferença está em que entre o fim do século 20 e o Começo do 21, de um jeito ou de outro, controlou-se a violência entre torcidas na Europa. 

Na América do Sul, ao contrário, a situação se agravou, a ponto da maior decisão da Libertadores em quase 60 anos ter virado motivo de vergonha continental.

Sim, continental, porque o acontecido em torno do superclásico poderia perfeitamente ter ocorrido num Gre-Nal, no Majestoso, Fla-Flu, ou Atlético x Cruzeiro. 

Com torcida única, como em Buenos Aires e em São Paulo ou Belo Horizonte, ou não. 

Porque a violência dos torcedores nestes lados do mundo tem a ver com as organizações criminosas que proliferam diante da ausência, ou da cumplicidade, do Estado. 

Nosso estágio civilizatório é tão deprimente que perdemos o combate aos criminosos das torcidas organizadas —minoria de 7% segundo revelam as pesquisas do sociólogo carioca Maurício Murad, que há décadas estuda a questão e não titubeia ao garantir que os maiores responsáveis são os que não vão além de medidas paliativas, as autoridades.

Limite-se ao exemplo paulista onde o combate à violência tem servido apenas para desmoralizar representantes do Ministério Público como, outrora, Fernando Capez e, atualmente, Paulo Castilho, em doce promiscuidade com a cartolagem protetora dos desatinos.

As cenas portenhas envergonharam, de fato. 

Como as do Maracanã em dezembro passado quando o Flamengo recebeu o Independiente na decisão da Copa Sul-Americana.

Ou como quando a torcida do Corinthians, em 2006, quase invadiu o gramado do Pacaembu para agredir os jogadores em jogo perdido para o River Plate, pela Libertadores.

Corinthians cujo ônibus é sistematicamente apedrejado quando chega ao Morumbi.

E ninguém faz nada.

Apenas enterra os mortos e a cabeça na areia.

O condor é o pássaro mais simbólico da América do Sul. Deveria ser o avestruz.

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