Fidelino mora na zona leste e tem sangue preto e branco desde antes de nascer.
Ontem acordou mais cedo do que de costume aos domingos e, às seis horas da matina, já estava com sua camisa branca imaculada, com o distintivo do Corinthians em cima do coração e o nome do Doutor Sócrates nas costas sobre o número 8.
Fidelino gastou boa parte do parco salário para comprar o manto que considera a peça mais valiosa que tem no armário e que usa apenas uma vez por ano, sempre no começo de dezembro, para homenagear o ídolo morto há dez anos.
Ao vesti-la como primeiro ritual antes de ir ao estádio em Itaquera, vizinho do muquifo onde mora, não havia nem um pingo de rancor na alma de Fidelino.
Restava a amarga lembrança de outro domingo dezembrino, em 2007, quando acordou com a certeza dos fiéis de que seu alvinegro não cairia, em Porto Alegre, ao enfrentar o Grêmio.
A frustração com o empate que rebaixou o time só ficou diminuída diante da indignação quando viu uma foto de gremistas e colorados abraçados em comemoração pela queda corintiana.
O Inter, ao mesmo tempo, perdeu do Goiás para mantê-lo na primeira divisão e ajudou a derrubar o Corinthians, em jogo que até hoje tem cartola de Parque São Jorge que jura ter sido entregue pelos gaúchos, como vingança pela perda do título brasileiro de 2005.
Se é verdade ou folclore jamais se saberá. Fidelino desde então repete a quem quiser ouvir que jamais se abraçará a um rival para festejar a queda de outro rival.
Sem raiva, mas com sentimento de revanche, marchou para o estádio com ingresso adquirido a duras penas para ver pela primeira vez o Corinthians jogar naquele palácio de mármore que conhecia à distância, inacessível para ele.
No caminho encontrou um solitário caminhante de camisa azul, preta e branca, um daqueles que até a pé sempre irá.
Tomado pela admiração solidária de verdadeiro torcedor, sentiu simpatia misturada com dó. Lembrou que Cássio jogou no Grêmio, como Dida, outro goleiraço, além do Capita William, de Adílson, e ficou em dúvida se queria mesmo a desgraça do adversário ou se limitaria sua torcida pela classificação corintiana à Libertadores.
Aproximou-se de Lupicínio, sim, xará do autor do hino gremista, estendeu-lhe a mão, desejou-lhe desajeitadamente boa sorte e o acompanhou em silêncio, sem falsidade ou demagogia, até o ponto em que se separaram, cada um para o lado de sua gente.
Uma gente sofrida que vê no futebol, na paixão pelo time, o meio de pertencimento maior até que o sentimento de brasilidade.
Corinthians e Grêmio têm em comum os Mosqueteiros, como símbolo do um por todos e todos por um, embora tenham sido cada um por si, porque assim exige a reverência ao jogo.
E o jogo repetiu o 1 a 1 de 2007, praticamente assegurando o rebaixamento gremista, embora sem cravar a espada porque, afinal, o Corinthians não nasceu para matar ninguém e se limitou a empatar no fim, quando um de seus quatro Mosqueteiros, Renato Augusto, fez mais um golaço para impedir a façanha gremista de ganhar os três pontos.
Fidelino voltou para casa duplamente feliz: o time dele está na fase de grupos da Libertadores e deixou uma réstia de luz para a permanência do Grêmio na Série A.
Lupicínio, sempre a pé, sabe que a esperança é a última a morrer e lamentou não ter pegado o endereço de Fidelino.
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