Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Anonimato de Ferrante ensina a romper com vigilância dos outros

Tutela desloca foco de atenção do que se quer expressar para o que é admitido comunicar

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Em recente viagem a Edimburgo, aproveitei a folga entre um e outro compromisso acadêmico para concluir a leitura de "A História da Menina Perdida", o quarto e último volume da série de romances escrita por Elena Ferrante sobre a amizade entre duas mulheres, cujos dramas pessoais e ansiedades se distendem através dos contornos de uma Nápoles miserável do pós-guerra e das utopias e protestos estudantis dos anos 60 ao combate à corrupção nas décadas seguintes.

Há alguns anos, Ferrante surgiu no meu radar por colecionar elogios dos críticos das revistas literárias de língua inglesa, atiçando a curiosidade de leitores e especialistas cada vez mais ávidos por conhecer a misteriosa identidade por trás do seu pseudônimo.

Edições italianas de livros da série napolitana de Elena Ferrante - Gabriel Bouys/AFP

Dessa época, me recordo da matéria elogiosa de James Wood sobre Ferrante para a New Yorker e das discussões acaloradas entre os meus amigos sobre um texto de Claudio Gatti para New York Review of Books a insinuar que ela seria, em verdade, a tradutora italiana Anita Raja, que nos últimos tempos —em paralelo ao sucesso de Ferrante— havia amealhado, a ninguém saber como, uma fortuna.

Lançada a polêmica, fiquei tentada a embarcar em um projeto de anonimato menos ambicioso, porém semelhante. Desfazendo-me aos poucos de todo excesso de presença digital; convencida de que Ferrante estaria certa em manter-se apartada dos olhares anônimos para preservar a sua autonomia criativa.

Afinal, algo que aprendo todos os dias no constante exercício da escrita é que a criatividade só se manifesta por inteiro quando nos sentimos preparadas para romper com a vigilância dos outros em nossas vidas. Ou seja, quando encontramos uma maneira de superar as tutelas ideológicas e afetivas que deslocam nosso foco de atenção daquilo que se quer expressar para o que é admitido comunicar aos outros sem melindres.

anita
Anita Raja, tradutora que se suspeita escrever com o pseudônimo de Ferrante - Reprodução

Em "Frantumaglia", uma sua coletânea de artigos, correspondências e entrevistas, a autora comenta a decisão de manter-se distante do público, a refletir sobre como as razões do anonimato foram se transformando, ao longo dos anos, desde a publicação de "Um Amor Incômodo" do começo da década de 1990 ao recente êxito internacional da série napolitana.

Segundo Ferrante, o que teve início como uma estratégia para combater a ansiedade transformou-se em um exercício no qual —em vez de colher todos os benefícios da fama— ela escolhera enfatizar a primazia da obra sobre o autor, dando-se a chance de ter algum espaço criativo para si mesma e, desta forma, trabalhar.

Esta explicação, no entanto, não foi capaz de me fazer recorrer aos seus livros. Pois o que mantinha sua autonomia criativa como escritora interferia cada vez mais na despreocupada marcha das minhas leituras de lazer, dando-me a sensação de que a sua estratégia de preservação concorria para o sucesso midiático dos seus livros. O que, embora conservasse o seu campo de expressão artística, inibia a minha espontaneidade de acesso à sua obra.

Da tradução da série napolitana para cá, não foram poucas as pessoas que me prescreveram os livros de Elena Ferrante com o mesmo entusiasmo febril dos jovens que compartilham a leitura das suas sagas prediletas.

No entanto, cada uma dessas recomendações nutria a minha suspeita de que, para esse mar de gente, talvez mais importante do que o conteúdo dos livros fosse a sensação de pertencer a uma tribo de leitores a julgar-se detentora das mesmas virtudes que no texto vislumbram.

Foi justamente por não conseguir me identificar com esses excessos que demorei até chegar à autora, deixando com que a paixão do público arrefecesse para finalmente impor meu próprio ritmo à leitura dos seus textos.

Quando finalmente tomei coragem de enfrentar a série, fui imediatamente atraída pela capacidade da autora de nos contar uma história incorporando a riqueza psicológica das suas personagens em um contexto geográfico que se expande à medida que cada uma adquire maior experiência de vida e autoconhecimento; tal no episódio em que Lenù deixa o bairro pela primeira vez para aprender o caminho da nova escola.

Bem como se retrai, ao regredirem os comportamentos. Isto ao exemplo de quando Lila percebe-se encurralada em sua própria festa de casamento, ou quando o espaço não se rompe por completo —como durante o terremoto— a revelar quão frágeis são as narrativas que sustentam suas vidas.

Através desta dinâmica, pude refletir durante a leitura sobre os movimentos de sístoles e diástoles que marcaram minha caminhada pelo mundo, a determinar os itinerários que me foram abertos pela vida e outros que se fecharam, traduzindo-se em mudanças de um país para outro, nas experiências de ruptura, na consolidação de amizades e, em um processo de amadurecimento no qual, assim como as personagens de Ferrante, aprendi que a plenitude consiste em “aceitar o rumo que a existência tomara sem se agitar demais. Traçar um sulco entre prática cotidiana e aquisições teóricas, aprender a se enxergar, a se conhecer, à espera de grandes mudanças.”

Assim, reitero o que disse em minha coluna anterior: Ferrante é um clássico para nossa época, a comunicar a experiência das mulheres contemporâneas em busca de maior autonomia. Sua obra restaura o interesse das leitoras no papel das emoções em nossas tomadas de decisão, atentando para o fato de que qualquer tentativa de progresso pessoal é relativa e, por isso mesmo, deve estar atrelada a uma jornada de autoconhecimento.

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