Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Uma vida livre de erros vale a pena ser vivida?

Inspirada em Hegel, Beauvoir ensina que a vida só é plena quando assumimos riscos

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Nesta semana, visitei a casa onde nasceu o filósofo G.W.F. Hegel em Stuttgart, capital do estado alemão de Baden-Württemberg. Ao completar a minha visita à exposição permanente sobre a sua vida e obra, enquanto me preparava para deixar o prédio construído no século 16, um funcionário presenteou-me com uma série de postais da fachada do imóvel, bem como de objetos de uso pessoal de Hegel e um retrato do filósofo.

hegel
O filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel. - Reprodução

A maioria dos cartões que recebi acompanha uma citação do filósofo retirada das suas correspondências, aforismos e outros escritos. Dentre os postais, o que mais me chamou a atenção reproduz uma instalação de arte montada na estação de trens da cidade, referindo-se a uma passagem da "Fenomenologia do Espírito" em advertência ao leitor de que o maior equívoco do homem está em deixar de questionar as suas próprias certezas por medo de cometer um erro.

Diz Hegel: “O temor de errar introduz uma desconfiança na ciência, que, sem tais escrúpulos, se entrega espontaneamente à sua tarefa e conhece efetivamente. Entretanto, deveria ser levada em conta a posição inversa: por que não cuidar de introduzir uma desconfiança nessa desconfiança, e não temer que esse temor de errar já seja o próprio erro?”

Na filosofia hegeliana é o método do contraditório —ou seja, a dialética— que insere esse movimento de dupla desconfiança tanto daquilo que temos por certo, como dos processos que nos levam a justificar tais certezas. Neste sentido, o erro deve ser compreendido como parte integral da experiência humana, a nos permitir um momento de reflexão a partir do qual temos a chance de testar novos rumos e aferir o nosso conhecimento.

Talvez este seja um dos motivos pelos quais, no ensaio "Literatura e Metafísica", Simone de Beauvoir defenda que a obra de Hegel seja o reflexo de um novo modelo de pensar filosófico condicionado pela crescente importância do sujeito e da psicologia humana na literatura.

Assim, ao buscar diálogo com as várias possibilidades de expressão do discurso literário, Hegel teria sido capaz de desenvolver um pensamento a partir do qual a experiência do homem na história o faz tornar-se responsável pelo desenvolvimento dos conceitos que ele utiliza para descrever a dinâmica do mundo e das suas próprias circunstâncias.

Ao extrapolar esse raciocínio, chegamos à conclusão parcial de que o maior ou menor grau de conhecimento adquirido depende da capacidade de errância; uma expressão que eu gostaria de adotar neste contexto tanto em referência ao vagar pelo meio do mundo em busca de novas experiências, como sobre a capacidade humana de aprender a viver a partir de uma reflexão sobre os seus próprios desvios.

Contemporâneo de Hegel e seu conviva mais ilustre, o poeta J.W. von Goethe descreveu a experiência da aquisição do conhecimento como um jogo de tentativas e erros através do qual devemos aprender a questionar as nossas primeiras impressões sobre determinado objeto ou fenômeno.

Segundo o poeta, qualquer que seja a nossa impressão inicial sobre algo, ela sempre estará subordinada a uma densa mistura de invenção e verdade. Ora, toda informação que inicialmente escapa aos sentidos acaba sendo preenchida pela imaginação. Assim, todos nós começamos a vida como quem tateia no escuro em busca de um ponto de apoio a partir do qual nos sentimos capazes de descrever o nosso esparso conhecimento sobre as coisas que nos interessam.

No entanto, ao permanecermos fixos naquele ponto, sem a coragem de avançar pela escuridão, por temor de uma queda ou de mais um encontro com o desconhecido, cometemos o erro de acreditar que dali onde fincamos a nossa presença temos um acesso privilegiado à verdade.

É isso que acontece quando tomamos pessoas ou situações como defesas contra as experiências e —por uma dívida de gratidão ou medo— deixamos que estas se transformem em nossas guardiãs ou baluartes, a dirigir o nosso conhecimento de forma a jamais termos a possibilidade de cometer um equívoco.

Mas, será que uma vida livre de riscos e erros vale a pena ser vivida? Essa é uma das várias questões levantadas no romance "Todos os Homens São Mortais", escrito por Simone de Beauvoir na década de 1940, com recente edição brasileira pela Nova Fronteira. Neste, um príncipe italiano se torna imortal para se manter no poder e proteger a sua cidade dos inimigos e do avanços da peste; no entanto, à medida que os anos passam, seu relacionamento com as pessoas torna-se cada vez mais dificultoso.

Em casa, ele espera manter os filhos adultos sob a sua defesa, cobrindo-os de privilégios e livrando-os dos perigos da guerra e da doença. Contudo, essa proteção obsessiva transforma-se indesejadamente em uma ferramenta de opressão. Os filhos se rebelam contra a vontade do pai, arriscando-se na vida, a cometer erros e arcar com as suas consequências.

Em sua imortalidade o príncipe esquece que a vida é justamente a tentativa de adquirir conhecimento do mundo por conta própria. Ora, nossos erros, por mais caro que nos custem, fazem parte desta dinâmica e compõem nosso patrimônio existencial.

Inspirada em Hegel, Beauvoir repassa-nos o ensinamento de que a vida só é plena quando assumimos os nossos próprios riscos. Isto implica em desenvolver a capacidade para lidarmos com frustrações, a reconhecermos a nossa parcela de responsabilidade nos problemas em que nos metemos.

Neste sentido, um dos maiores ensinamentos que recebi veio do judô, esporte que pratiquei durante quase todo o meu percurso escolar. Hoje eu percebo que foi através dele que aprendi a administrar riscos e refletir sobre as minhas próprias falhas. Na vida, como no tatame, não interessa o golpe: saber cair é o importante.

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