Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Transgêneros levantam debate sobre o que é natureza e cultura no ser humano

Nem a solução liberal nem a conservadora são capazes de emprestar saída para o dilema

​Morta em outubro deste ano, a filósofa inglesa Mary Midgley (1919-2018) tornou-se conhecida mundo afora pelos seus estudos comparativos sobre ética e comportamento animal.

Um dos seus textos mais famosos, "O Conceito de Bestialidade: Filosofia, Ética e Comportamento Animal", analisa uma série de doutrinas filosóficas que negam o conceito da natureza humana total ou parcialmente, como o discurso existencialista de Jean-Paul Sartre de que tal natureza inexiste e de que o homem nada mais é do que faz de si mesmo.

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A filósofa britânica Mary Midgley - Reprodução/IanRamseyCentre/YouTube

Neste diapasão, Midgley critica a ideia da condição humana enquanto conceito oposto à natureza. Ora, diz-nos a autora que, em textos como "O Existencialismo É um Humanismo", Sartre apresenta um conceito da condição humana que apenas explica o fato do homem; sem levar a cabo a análise das motivações do animal humano para agir de tal ou qual maneira em dada situação.

O que nos faz ser do jeito que somos não depende, pura e simplesmente, da nossa cultura e das nossas escolhas. Segundo Midgley, assim como o pavor do escuro não se resume a uma opção pela covardia, também o apego que temos pelos nossos filhos não seria fruto de uma predileção consciente ou de uma imposição cultural.

Midgley não está sozinha em suas críticas a Sartre. Outros pensadores como Albert Camus e Maurice Merleau-Ponty também se opuseram às limitações do princípio existencialista de que a existência precede a essência.

Entretanto, Midgley parece-me a única a sublinhar os mitos sobre o homem e os preconceitos sobre a natureza que afetam a pratica filosófica; impedindo-nos, consequentemente, de formular uma abordagem ética baseada na observação da natureza humana e no papel dos instintos em nossas vidas.

O argumento da autora contra esses preconceitos —como a ideia de que os instintos se contrapõem de forma radical à liberdade e à razão— consiste em mostrar que o estudo comparativo entre a natureza do homem e dos outros animais não se trata de mero exercício intelectual. Repercute em todo nosso cotidiano.

Um exemplo disso é nossa atual incapacidade de solucionar obstáculos na aceitação social de homens e mulheres trans. O que, infelizmente, transforma uma discussão sobre emprestar dignidade a muitos em objeto de contenda na guerra cultural entre liberais e conservadores.

 “Quem decide o seu gênero?” pergunta-nos a revista The Economist em matéria sobre posturas políticas e problemas culturais relacionados à minoria trans em países como Inglaterra, Canadá e Estados Unidos.

Enquanto ativistas pela visibilidade dos indivíduos transgêneros lutam pelo reconhecimento legal da autoidentificação —a ideia de que a decisão sobre gênero recai numa escolha individual, baseada no que acreditamos ser masculino ou feminino—, alguns médicos e psicólogos questionam o impacto, a longo prazo, das campanhas que visam acelerar o processo de transição com tratamentos hormonais e cirurgias corretivas, tanto em adultos como em crianças e adolescentes.

Ora, são vários os motivos pelos quais seres humanos decidem mudar de gênero. Alguns sofrem de desconforto com a identidade que lhes foi atribuída ao nascer —isto é, sofrem disforia; outros pensam encontrar na transição uma solução para problemas que, muitas vezes, não conseguem identificar por si mesmos, como quadros de depressão ou transtornos do espectro de autismo.

É o que registram as estatísticas do serviço nacional de saúde do Reino Unido (NHS) entre crianças que buscam apoio no processo de transição.

Segundo os dados aos quais teve acesso, a Economist esclarece: “comparado com 1% da população [do Reino Unido], 13% das crianças que buscam o NHS para tratar uma possível disforia de gênero são diagnosticadas com algum transtorno do espectro de autismo e, consequentemente, possuem parâmetros rígidos e obsessivos sobre categorias sociais. Cerca de 40% sofrem de depressão.”

​Cito estes números para mostrar como nem a solução liberal de que o gênero deva ser reconhecido como consequência de um processo de autoidentificação, nem a solução conservadora em censurar a discussão sobre gênero são capazes de emprestar uma saída para um dos principais dilemas comportamentais de nossa época.

A discussão de gênero nos permite notar que, para o animal humano, a distinção entre natureza e cultura não é absoluta. Ora, diz-nos Midgley: “Uma criatura nasce com determinados poderes [e tendências], mas precisará de tempo, prática e (muitas vezes) algum exemplo antes de poder desenvolvê-los adequadamente.”

O homem exerce a sua liberdade de forma negativa. Ou seja, nós somos livres para negar aquilo que nos é natural, como o gênero que nos é atribuído ao nascermos, mas não podemos desenvolver uma gama de novos poderes e tendências que não competem ao nosso organismo.

Assim, o exercício consciente da liberdade humana implica sabermos lidar com as limitações da nossa natureza: “Se quisermos saber o que é bom para o homem, devemos saber quais são as suas possibilidades e, em resumo, qual é o preço a ser pago por cada uma de suas opções.”

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