Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

O que diz uma foto?

Cada vez mais a fotografia passa a ocupar um espaço limiar entre verdade e artifício

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Em ensaio de 1973 para a New York Review of BooksSusan Sontag descreve como fotografia teria se tornado uma das formas de arte mais representativas do século 20, a expressar o impulso do homem moderno por colecionar eventos do cotidiano com o mais algo grau de fidelidade: “As fotos são, talvez, os mais misteriosos de todos os objetos que compõem e adensam o ambiente que identificamos como moderno. As fotos são, de fato, experiência capturada, e a câmera é o braço ideal da consciência em sua disposição aquisitiva.”

Segundo a autora, esta disposição aquisitiva do impulso fotográfico, caracterizada pela necessidade de registrarmos os mínimos detalhes das nossas circunstâncias, guardaria uma discreta semelhança com a vontade de conhecimento que define o ser humano em relação aos outros animais. Ou seja, ao clicarmos um objeto, teríamos a impressão de que deixamos de ser meros figurantes da realidade para nos tornarmos os seus diretores de cena, exercendo nosso poder em relação ao ambiente do qual fazemos parte.

Dessa forma, as fotografias que acumulamos ao longo da vida permitem-nos contar a nossa história da maneira que acharmos mais conveniente, sem levar em conta o risco que uma foto representa para a simplificação da linguagem que utilizamos para relatar o nosso conhecimento da realidade e descrever muitas das nossas emoções. 

Ora, diz Sontag: “A foto é uma fina fatia de espaço bem como de tempo. Num mundo regido por imagens fotográficas, todas as margens (“enquadramento”) parecem arbitrárias. Tudo pode ser separado, pode ser desconexo, de qualquer coisa: basta enquadrar o tema de um modo diverso. (Inversamente, tudo pode ser adjacente a qualquer coisa.) A fotografia reforça uma visão nominalista da realidade social como constituída de unidades pequenas, em número aparentemente infinito —assim como o número de fotos que podem ser tiradas de qualquer coisa é ilimitado. Por meio de fotos, o mundo se torna uma série de partículas independentes, avulsas; e a história, passada e presente, se torna um conjunto de anedotas e fait diversA câmera torna a realidade atômica, manipulável e opaca. É uma visão do mundo que nega a inter-relação, a continuidade, mas confere a cada momento o caráter de mistério. Toda foto tem múltiplos significados; de fato, ver algo na forma de uma foto é enfrentar um objeto potencial de fascínio.”

Embora pensemos com frequência que a fotografia nos dê inquestionáveis provas da realidade, cada vez mais ela passa a ocupar um espaço limiar entre verdade e artifício, refletindo o fenômeno já denunciado por Friedrich Nietzsche de que, apesar de toda sua sede por conhecimento, o animal humano necessitaria de mentiras para sobreviver.

Se as fotos dos nossos avós dão a impressão de opulência e riqueza, logo imaginamos um passado de fartura, ariscando-nos a fantasiar a importância dos nossos antepassados. Da mesma forma, se encontramo-nos descontentes, passamos um pouco de maquiagem no rosto, marcamos uma pose e tiramos uma selfie em busca de algo que nos permita esquecer todos os nossos sentimentos de insegurança ou de inferioridade.

Morta em 2004, Susan Sontag não testemunhou a evolução dos smartphones. No entanto, durante a década de 1960, ela chegou a conviver com Andy Warhol, que, segundo o escritor Adam Gopnik, teria sido um dos artistas responsáveis pela criação das primeiras selfies contemporâneas. Como na famosa Polaroid em que o artista aparece assoando o nariz, demonstrando a facilidade com que as modernas câmeras compactas e as instantâneas nos permitiriam capturar a nossa própria imagem.

A partir desta imagem de Warhol, Gopnik comenta da possibilidade de encontrarmos qualquer resquício de individualidade na selfie.  Para ele, o principal impulso por detrás desses registros não deveria ser prontamente caracterizado por narcísico. Afinal, antes mesmo de nos preocuparmos com a nossa aparência e a repercussão da nossa imagem pelas redes sociais, a selfie nasceria de um desejo pelo constante monitoramento da personalidade.

Gopnik também chama a nossa atenção para como o barateamento da tecnologia fotográfica nos permite produzir inúmeras imagens sem os custos adicionais que, em um passado não muito distante, compreendiam a compra de bobinas de filme e os processos de revelação. Igualmente, ninguém mais precisa se familiarizar com o equipamento fotográfico para fazer belos registros de si ou do cotidiano.

Desta forma, conceitos que costumavam ser fundamentais para a feitura de uma imagem, como a abertura da lente e a velocidade do disparador, passam despercebidos para a maioria dos usuários de câmeras digitais e smartphones.

Cada vez mais interessados em processos de pós-produção, tal a remoção de imperfeições e a aplicação de filtros, esses usuários limitam-se ao aperfeiçoamento de uma realidade, como se o nosso conhecimento não devesse ultrapassar a superfície das pessoas e dos objetos. 

Em junho, o fotógrafo Sebastião Salgado foi alvo de polêmica ao comentar que, apesar de constituírem uma linguagem de comunicação, as imagens produzidas por smartphones não seriam fotografias propriamente ditas. Para ele, a tradicional profissão do fotógrafo estaria com os seus dias contados: “as demandas estão mudando.”

Na mesma época, o fotógrafo e cinegrafista israelense Shai Levy lançou uma interessante provocação no seu Facebook. Referindo-se a uma nova geração de artistas visuais, ele reflete sobre a necessidade dos jovens criadores em tudo fazer com perfeição: “Eu não estou reclamando. Só acho incrível que, em uma época caracterizada pela máxima acessibilidade ao patrimônio cultural e pela abundancia de ferramentas de criação, nós estejamos preocupados em inspirar uns aos outros a mais extrema normalidade.”

Levy também argumenta que o anseio artístico por perfeição e normalidade poderia ser visto como um reflexo daqueles mesmos impulsos culturais que concorreram para a recente ascensão do populismo em algumas das principais democracias ocidentais.

O argumento do fotógrafo muito se assemelha ao posicionamento do jornalista britânico Will Storr em “Selfie: How We Became So Self-Obsessed and What It's Doing to Us” (selfie: como ficamos tão obcecados por nós mesmos e o que isto está fazendo conosco).

Neste livro de 2017, o autor examina como o ideal ocidental de aperfeiçoamento pessoal teria sido transformado pela contracultura dos anos 1960.

Segundo ele, fenômenos como a psicologia da autoestima teriam sido responsáveis por difundir a perigosa crença de que cada um de nós é especial, acarretando muitas vezes nas tentativas de expressar uma suposta perfeição através das fotos e vídeos que produzimos desenfreadamente com o propósito de reinventar a nossa identidade a partir de uma personalidade digital.

Diante de todos esses depoimentos, seríamos tolos em crer que uma imagem vale mais do que mil palavras. No entanto, as minhas experiências com a câmera sempre se traduziram em um aprendizado sobre a vida. A reeducação do meu olhar pela fotografia me encorajou a questionar a percepção daquilo que fora projetado em mim pelos outros, para, finalmente, tornar-me capaz de redimensionar as minhas circunstâncias.

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