Se, como escrevi na última coluna, a companhia dos livros é capaz de nos ajudar a enfrentar os piores momentos das nossas vidas, também não restam dúvidas de que a leitura, quando feita de modo negligente, ou seja, sem levar em consideração as particularidades do texto, pode nos atrapalhar, causando, inclusive, a perpetuação de velhos preconceitos.
Hoje, portanto, pergunto-me se não deveria haver um método capaz de nos fazer maximizar os benefícios da nossa experiência como leitores, sem nos deixar cair em esparrelas, permitindo-nos alcançar um maior conhecimento do ser humano e das suas circunstâncias.
Um dos filósofos que nos chamam a atenção para a necessidade de tal método é Baruch Spinoza (1632-1677), holandês de origem judaico-portuguesa, considerado um dos precursores da modernidade secular.
No capítulo sete do “Tratado Teológico-Político” (1670), livro que tem por objeto analisar a problemática relação entre religião e política, na tentativa de salvaguardar a liberdade do individuo contra manifestações de intolerância, Spinoza expõe o seu método para a leitura da Bíblia, posicionando-se, dessa forma, como um dos pioneiros, na modernidade, do estudo crítico e literário das Sagradas Escrituras.
Sobre a importância e o alcance deste aspecto da obra de Spinoza, o pesquisador Steven Nadler, biógrafo do autor, comenta:
“Não havia nada de novo por volta de 1670 em afirmar que Moisés não escrevera toda a Torá ou, até mesmo, em sugerir que as Escrituras teriam sido compostas por seres humanos e transmitidas através um falível processo histórico. Por outro lado, a afirmação radical e inovadora de Spinoza foi a de argumentar que tudo isso teria grande importância para a leitura das Escrituras e de como estas devem ser interpretadas”.
O que me chama a atenção no método de Spinoza é que ele pode ser utilizado não somente para os textos bíblicos, como para a interpretação de qualquer outro, principalmente se pensarmos que, atualmente, não apenas as Escrituras, mas outros importantes registros culturais são deturpados por discursos de cunho ideológico com o intuito de induzir ao preconceito e à intolerância.
Exemplo disto é a apropriação dos clássicos por setores extremistas na tentativa de justificar crenças misóginas, racistas e antissemitas. Fenômeno este recentemente analisado pela pesquisadora Donna Zuckerberg em “Not All Dead White Men” (nem todos os homens brancos mortos, 2018), livro em que somos reiteradamente alertados para o fato de que a interpretação ideológica de textos da Antiguidade clássica deve ser abordada não como uma legítima hipótese de explicação do mundo antigo, mas como a projeção de um ideal político contemporâneo.
Ora, na apresentação do seu método, Spinoza lança queixa semelhante com relação à apropriação dos textos sagrados, o que pode nos guiar em nossa tentativa de elaborarmos um diagnóstico de como, ainda hoje, a leitura de textos fundamentais permanece refém de pretensões políticas:
“Não há, com efeito, nada com que o vulgo pareça estar menos preocupado do que em viver segundo os ensinamentos da Sagrada Escritura. É ver como andam quase todos fazendo passar por palavra de Deus as suas próprias invenções e não procuram outra coisa que não seja, a pretexto da religião, coagir os outros para que pensem como eles”.
No “Tratado”, portanto, Spinoza identifica as pretensões típicas da sua época, ao exemplo dos sacerdotes que interpretam as Escrituras à luz dos seus próprios interesses, alegando, entre outras coisas, que, para se entender os textos sagrados, o indivíduo precisaria de qualquer inspiração sobrenatural vedada ao mais comum dos mortais; ao que retruca o filósofo:
“Os que exigem uma luz sobrenatural para entender o pensamento dos profetas e dos apóstolos parecem é estar carecidos da luz natural. E longe de mim julgá-los possuidores de um dom divino sobrenatural qualquer”.
Nada poderia ser mais distante do método de Spinoza do que a ênfase no sobrenatural. Ora, o filósofo concebe o seu método como sendo baseado no exercício da razão, não exigindo, portanto, qualquer extraordinária aptidão do leitor:
“Se, de fato, cada um possui plena autoridade para interpretar a Escritura, então, a norma para essa interpretação só pode ser a luz natural comum a todos e não uma luz qualquer superior à natureza, ou uma autoridade externa qualquer, além de que o método não deve ser tão difícil que só os filósofos muito argutos o possam seguir; deve é ser um método em consonância com a índole e a capacidade natural do comum dos homens, conforme demonstramos ser o caso do nosso”.
Uma importante característica do método de Spinoza é que ele seria análogo ao que empregamos para interpretar a natureza. Deste modo, já que não há outro meio de compreendermos a natureza senão a partir da sua própria observação, nós, também, só teríamos condições de entender as Escrituras a partir do meticuloso exame do seu fundo histórico:
“Na realidade, assim como o método para interpretar a natureza consiste essencialmente em descrever a história da mesma natureza e concluir daí, com base em dados certos, as definições das coisas naturais, também para interpretar a Escritura é necessário elaborar a sua história autêntica e, depois, com base em dados e princípios certos, deduzir daí como legítima consequência o pensamento dos seus autores”.
Para o filósofo, a história das Escrituras compreenderia a língua original em que elas foram compostas, ao que devemos ter em mente a evolução da sua gramática e, também, na medida do possível, das palavras e das expressões típicas do período em que cada texto foi escrito, além da catalogação das principais opiniões oferecidas em cada livro, bem como a sua repetição, para que sejamos capazes de perceber e analisar as suas mais variadas nuances.
Além disto, Spinoza também inclui nessa história, evidentemente, os processos de recepção, reprodução e de canonização dos textos bíblicos.
No entanto, em virtude da antiguidade desses textos, tais elementos históricos também representam obstáculos que, dentro das nossas limitações, precisamos confrontar para adquirirmos uma maior e mais clara compreensão do que dizem as Escrituras.
Assim, o principal recado de Spinoza para os nossos dias parece ser o de que a leitura de todo e qualquer texto precisa ser feita com cuidado e parcimônia. O leitor deve, entre outras coisas, estar ciente do fato de que todo escrito possui um contexto específico, sendo, portanto, a compreensão da sua história uma parte fundamental do nosso exercício de interpretação; a boa leitura, neste sentido, implica um exercício de responsabilidade como nos orienta Spinoza:
“Se ignoramos tudo isso, não podemos de maneira nenhuma saber qual foi ou qual poderia ser a intenção do autor; pelo contrário, se o conhecermos exatamente, organizaremos os nossos pensamentos de forma que não seremos assaltados por nenhum preconceito, quer dizer, a não atribuir ao autor ou àquele em nome de quem ele escreveu nem mais nem menos do que aquilo que é justo e a não imaginar coisas diferentes das que o autor poderia ter em mente ou do que a sua época e as circunstâncias impunham”.
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