Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Livro de Stefan Zweig reflete sobre raízes da polarização política na Europa

Em 'O Livro do Xadrez', autor austríaco recria um ambiente de convivência aparentemente civilizada em plena Segunda Guerra

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De férias em Recife, aproveito para colocar em dia as leituras que se acumularam desde o início do ano, quando a minha vinda ao Brasil ainda era incerta, e os livros que costumo receber passaram a formar uma formidável pilha na pequena sala do apartamento da minha mãe.

Entre os volumes que recebi e que mais me chamaram a atenção está "O Livro do Xadrez", de Stefan Zweig, autor austríaco de origem judia que sempre me provocou grande fascínio, seja por conta dos motivos que o levaram a buscar refúgio no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial, seja pelo mistério que envolve a sua morte por suicídio, em Petrópolis.

Stefan Zweig em Ossinig, perto de Nova York, onde preparou grande parte da autobiografia - Suse Hoeller/Divulgação

Aliás, também por seu interesse em temas ligados à psicologia e a psicanálise ou, ainda, em virtude da sua vasta rede de correspondentes, da qual fazem parte Sigmund Freud, Thomas Mann, Joseph Roth e tantos outros intelectuais de língua alemã que testemunharam a destruição de um mundo por uma sucessão de crises políticas que culminaram na mais terrível carnificina.

Um dos ingredientes que transformam "O Livro do Xadrez" em extraordinária leitura é o fato de Zweig haver conseguido recriar um ambiente cosmopolita, de convivência aparentemente civilizada entre os passageiros de um navio, em plena Segunda Guerra.

Como se o cotidiano na embarcação fosse uma espécie de realidade paralela, na qual o conflito europeu faz-se presente apenas enquanto pano de fundo, a informar a dinâmica entre os passageiros, especialmente durante as partidas de xadrez de Mirko Czentovic —campeão mundial até então invicto, cujo talento para o jogo acabou libertando-o da pobreza na qual havia nascido— contra o Dr. B., advogado, filho de uma importante família austríaca, que reaprendeu a jogar em uma tentativa de sobreviver ao período em que fora preso pela Gestapo e obrigado a cumprir uma exaustiva rotina de interrogatórios.

Ao fazer com que os eventos políticos da época permaneçam em segundo plano, optando por concentrar-se na caracterização dessas personagens e por narrar o embate entre ambas, Zweig acaba transformando o seu texto em uma espécie de reflexão sobre os elementos da psicologia que contribuíram para o acirramento da polarização política na Europa da primeira metade do século 20, arrastando todo o continente para a guerra.

O principal componente psicológico que informa o texto de Zweig é a monomania, posta em evidência já nas primeiras páginas do livro, quando o narrador —a confundir-se com a própria figura do autor— comunica a sua curiosidade com relação a um dos seus companheiros de viagem, Czentovic, o campeão de xadrez:

"Tipos monomaníacos, com uma ideia fixa, sempre me fascinaram, pois quanto mais limitado é o campo de interesse de uma pessoa, mais próxima ela está do infinito; são esses tipos aparentemente alheios à realidade que constroem, em sua especialidade, uma miniatura estranha e completamente única do mundo — ao modo dos cupins. Por isso não escondi minha intenção de, ao longo dos doze dias de viagem até o Rio de Janeiro, examinar de perto tal espécime de limitação intelectual tão particular".

Porém, à medida que a história se desenvolve e Czentovic é derrotado por Dr. B em uma primeira partida, é este, e não o enxadrista profissional, que passa a chamar a atenção do narrador.

Alguns comentaristas da obra tendem a vislumbrar, no embate entre Czentovic e Dr. B, uma expressão do conflito entre o homem de ação (ou seja, alguém capaz de impor a sua vontade no mundo de modo irrefletido e muitas vezes tirânico) e o humanista (caracterizado pela sensibilidade e pela capacidade de analisar situações a partir de perspectivas múltiplas, e, com isso, fazer bom uso da razão).

No entanto, logo percebemos que, se tomada ao pé da letra, essa distinção não nos ajuda na compreensão das personagens, pois ambas partilham de uma mesma propensão à monomania, de modo que, ao analisarmos os seus comportamentos durante as partidas de xadrez, percebemos que nem Czentovic pode ser encarado como um completo autômato, carente de sentimentos e de visão moral nem o Dr. B. consegue manter-se equilibrado e agir com parcimônia em todos os momentos da trama.

Como bem observa Mariana Holms no posfácio da edição brasileira de "O Livro do Xadrez", publicada em 2021 pela editora Fósforo: "Ambas as personagens se deslocam para o polo oposto de sua caracterização inicial. A ambiguidade das duas personagens e o seu deslocamento relativo podem ser lidos como um importante alerta da novela para um aspecto da condição humana e da própria narrativa histórica. Cultura e barbárie são permeáveis".

É justamente essa permeabilidade que faz com que o Dr. B seja muito mais atraente que Czentovic para o narrador de Zweig. Afinal, desde o início do livro, Czentovic é caracterizado como uma figura tosca, sem o mínimo de sofisticação intelectual, o que, de certa forma, aos olhos do próprio narrador, justificaria a sua inclinação à monomania.

Já Dr. B é apresentado como alguém que desenvolveu a sua compulsão pelo xadrez tardiamente, durante a experiência do cativeiro, onde, para driblar a solidão, passou a encarar o jogo como uma espécie de refúgio no qual, durante algum tempo, conseguiu extravasar os seus sentimentos de raiva e impotência diante daquela situação, mas que, gradualmente, passou a mantê-lo duplamente aprisionado, pois, como ele mesmo confidencia ao narrador:

"Era uma obsessão contra a qual não conseguia me defender; de manhã cedo até a madrugada, só pensava em bispo, peão, torre e rei, em a, b, c, em xeque-mate e roque; precipitava-me para aquele quadrado quadriculado com todo o meu ser e minhas emoções. A alegria de jogar transformou-se em um anseio de jogar, o anseio de jogar transformou-se em pressão de jogar, uma mania, uma raiva frenética que invadia não apenas as minhas horas de vigília, mas também, aos poucos, o meu sono".

O desequilíbrio que acabou levando Dr. B ao surto durante o seu período na prisão é reencenado em sua última partida de xadrez contra Czentovic, conforme ele vai, aos poucos, perdendo o controle diante do adversário, chegando ao ponto de fazer um movimento sem levar em consideração a real disposição das peças no tabuleiro, como se estivesse jogando uma partida distinta em sua imaginação.

Com isso, ele acaba chocando os demais passageiros que, ao considerá-lo um homem sóbrio e erudito, com interesses diversos, esperavam da personagem um outro tipo de comportamento; como se a cultura fosse uma armadura robusta o suficiente para blindá-lo contra os seus sintomas de intoxicação pelo jogo.

É nesse sentido que o texto de Stefan Zweig se mostra atual, pois ele nos faz perceber que qualquer um pode, em algum momento, desenvolver determinada ideia fixa e, com isso, projetar no mundo toda espécie de fantasia, contribuindo para o agravamento de um quadro de polarização e conflito; tornando-se, por isso mesmo, capaz de destruir os outros e de provocar a sua própria destruição.

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