Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Forma da escrita deve ser chave para interpretar conteúdo de um texto

Opção do autor por expressar ideias por meio de poesia, prosa ou ensaio muda a maneira de ler uma obra

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Sempre que encontro uma oportunidade, volto a chamar a atenção do leitor para a relação entre filosofia e literatura. Insisto, portanto, em discutir o vínculo entre a forma, ou seja, a maneira como uma ideia é apresentada, e o seu conteúdo.

Reitero que, se um autor optou por comunicar uma ideia através de um romance ou de um poema, é porque ele sente a necessidade de que essa mesma ideia seja interpretada a partir das regras que informam tais gêneros literários. Afinal, nem todo texto, ainda que ele esteja dizendo algo bastante semelhante aos demais, deve ser lido do mesmo modo.

Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro
Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro - Wang Tiancong/Xinhua

Assim, por exemplo, a nossa compreensão dos dilemas representados em uma tragédia é enriquecida a partir de uma análise de como aquele drama, em específico, possui determinadas características e problematiza elementos comumente aceitos como sendo essenciais para uma definição daquele gênero.

Isso que acabei de dizer sobre a tragédia é igualmente aplicável à comédia. Afinal, ela também segue suas próprias regras e convenções, como a representação de personagens de caráter rasteiro e a expectativa de que uma obra cômica deva ter um final feliz.

A literatura, no entanto, está repleta de textos que questionam essa possibilidade, ao exemplo de "O Mercador de Veneza" (1600) —já examinado em uma coluna anterior—, cujo desfecho de Shylock faz com que a felicidade alcançada por Pórcia e Bassânio seja relativizada.

Há algumas semanas, durante um dos encontros do grupo de pesquisa coordenado por mim no Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP, discutimos esse mesmo tema a partir de uma leitura de "Os Judeus" (1749), de G.E. Lessing, um dos principais representantes do iluminismo alemão, festejado pela sua defesa da tolerância religiosa.

Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781) retratado em pintura a óleo de Anna Rosina de Gasc (1767/68)
Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781) retratado em pintura a óleo de Anna Rosina de Gasc (1767/68) - Gleimhaus Halberstadt/Museum Germany

Em "Os Judeus", um digno e misterioso viajante salva a vida de um barão durante uma emboscada, arquitetada por seus próprios criados, que, ao conseguirem escapar da cena do crime, reforçam a suspeita do patrão de que ele havia sido atacado por um bando de malfeitores de religião judaica.

Passado o incidente, o barão insiste para que o desconhecido herói passe algum tempo em sua propriedade. Lá chegando, o viajante tenta dissuadir os demais convivas de que os judeus teriam sido responsáveis pelo ocorrido e, ao ser ele mesmo furtado de um precioso objeto de estimação, acaba descobrindo a identidade dos verdadeiros culpados pela emboscada que, em realidade, eram cristãos.

Por fim, com o objetivo de provar a sua gratidão ao viajante, o barão lhe oferece a mão da sua filha em casamento. Este, no entanto, rejeita a oferta e ao fazê-lo revela que a sua negativa se dá pelo fato de ser ele mesmo judeu: "A única recompensa que eu exijo é a de que, no futuro, você seja mais brando e menos precipitado ao julgar a minha nação".

Ao concluir a peça dessa maneira, frisando a impossibilidade do casamento entre o viajante e a filha do barão, o texto de Lessing deixa de ser uma comédia pura e simplesmente para provocar uma reflexão sobre como os preconceitos de uma sociedade impõem obstáculos à realização da felicidade individual.

Outros exemplos de como a nossa familiaridade com as características de um gênero literário favorece a compreensão das ideias e dos questionamentos propostos por determinado autor encontram expressão nas obras de Friedrich Nietzsche e Michel de Montaigne.

Presença recorrente nos meus textos para a Folha, Nietzsche é célebre por haver desenvolvido a sua filosofia a partir de um estilo aforístico. Foi através dos seus textos ou do susto que levei ao perceber que era possível escrever filosofia daquela maneira que comecei a me interessar pela relação entre o literário e o filosófico.

Lembro-me, inclusive, de que uma das primeiras leituras que fiz sobre esse tema foi um artigo de Tereza Cristina B. Calomeni, publicado nos Cadernos Nietzsche, em 2003, quando eu ainda engatinhava na vida acadêmica. Eis um recorte do comentário de Calomeni sobre Nietzsche que me serviu de guia durante aquela época de descobertas intelectuais, a atiçar a minha curiosidade com relação à possibilidade de se aplicar semelhante reflexão à obra de outros autores:

"O aforismo, mais do que simples escolha estilística, é tributário da determinação de fazer experiências com o pensamento [...]. É, então, imperioso que o leitor suporte os perigos e as inconveniências da leitura de um texto retalhado, recusando-se a permanecer no hábito da continuidade discursiva".

Segundo Calomeni, a forma aforismática adotada por Nietzsche em sua obra fornece-nos tanto outra concepção de linguagem e de pensamento, como outra maneira de compreender a relação entre essas duas coisas. Assim, para melhor aproveitarmos o que Nietzsche tem a nos dizer, devemos estar atentos aos elementos que caracterizam o estilo dos seus textos.

Tal Nietzsche, cujos aforismos permitem que o leitor dialogue com as suas ideias a partir de perspectivas distintas, Michel de Montaigne (1533-1592), considerado um dos pioneiros do ensaio na modernidade, escreve de modo a induzir o leitor a questionar as próprias certezas e a refletir sobre si próprio.

O ensaio, portanto, desenvolvido a partir da tradição iniciada por Montaigne, é concebido como um estilo experimental, a permitir que o seu autor tenha a chance de esclarecer para si as suas próprias convicções. Desse modo, mais que cumprir um papel informativo ou mesmo apresentar conclusões derradeiras sobre um assunto específico, o ensaísta se esforça em questionar como e por que veio a pensar sobre um determinado tema. Comenta Montaigne em um dos seus mais notáveis textos:

"Estudo a mim mesmo mais do que qualquer outra coisa e desse estudo constitui toda a minha física e a minha metafísica [...]. Gostaria mais de entender bem o que se verifica em mim do que compreender perfeitamente Cícero. Na minha própria experiência já tenho com o que me tornar sábio, desde que atente para os seus ensinamentos".

Ao lermos Montaigne, percebemos que os seus ensaios podem ser compreendidos como provas materiais daquilo que, mais tarde, Hannah Arendt chamaria de o diálogo do eu consigo mesmo.

Esse diálogo, que tão bem caracteriza a atividade do pensamento, implica aprendermos a lidar com a diversidade que existe dentro de nós. Quem lê um ensaio e, principalmente, um ensaio de Montaigne, deve estar atento para o papel que essa diversidade desempenha na compreensão do seu autor. Por fim, comenta o próprio ensaísta:

"Dou à minha alma ora um aspecto, ora outro, segundo o lado por onde a examino. Se falo de mim de diversos modos é porque me observo de diversos modos. Em mim encontram-se de um jeito ou de outro todas as contradições [...]. E quem se estuda bem atentamente encontra em si, até em seu próprio julgamento, essa volubilidade e essa discordância."

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