Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Pedalar é maravilhoso e nos ajuda a pensar

Bicicleta ensina que, para bem agirmos, precisamos estar cientes de nossos corpos e propriamente inseridos no mundo

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Diversas vezes durante a pandemia sonhei que praticava alguma atividade física. Às vezes sonhava que estava jogando basquete, outras que andava de skate pelo bairro ou que corria pura e simplesmente. Era como se, cansado de estar preso em casa, o meu corpo pedisse para ser exercitado.

Não sei quantos de vocês tiveram experiência semelhante durante os meses de lockdown. De minha parte, acredito que a situação tenha sido agravada pela dupla obrigação que senti de me manter isolada pelo máximo de tempo possível, tanto em razão do vírus, como da conclusão do doutorado.

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Ciclistas pedalam na ciclovia do parque do Ibirapuera, na zona sul da capital paulista - Eduardo Knapp -19.fev.21/Folhapress

Deste modo, somente em março deste ano, com a terceira dose da vacina, e havendo defendido a tese, tomei coragem de colocar os pés fora de casa na tentativa de reestabelecer uma rotina de exercícios.

Como estávamos na primavera, voltei a pedalar para me locomover de um ponto a outro da cidade, ziguezagueando entre os carros; me sentindo maravilhosamente habilidosa com o guidão, como se estivesse naquele filme da Sessão da Tarde em que Kevin Bacon perde tudo na bolsa de valores e precisa se reinventar, passando a usar a bicicleta para fazer entregas à toda velocidade pelas ruas e ladeiras de San Francisco.

Quem nasceu na década de 1980 com certeza deve conhecer esse filme —embora hoje o seu enredo soe como uma antecipada e lamentável ode ao trabalho mal remunerado de entregadores de aplicativo, tudo o que consigo lembrar de "Quicksilver" (1986) são as cenas que evocam o prazer do pedal.

Pedalar é maravilhoso e foi algo que sempre me ajudou bastante a lidar com a ansiedade. Quando estamos na bicicleta, corpo, máquina e ambiente demandam atenção, a impedir que sejamos assaltados por todos aqueles pensamentos intrusivos que normalmente atrapalham a nossa justa percepção da realidade. Neste sentido, a bicicleta nos ensina que, muitas vezes, para bem pensarmos e agirmos, precisamos estar cientes dos nossos corpos e propriamente inseridos no mundo.

Mas esse aprendizado não é exclusividade de quem pedala, pois muitas outras atividades físicas também podem nos ajudar neste quesito. Assim, ao escrever sobre os benefícios da caminhada, Friedrich Nietzsche observa algo que não está muito distante daquilo que aprendi com a bicicleta: segundo o filósofo, andar nos facilita as ideias.

Quem também gostava de fazer longas caminhadas era Simone de Beauvoir, que muitas vezes chegava a percorrer de 30 a 40 quilômetros em um único dia. Sobre isto, em recente biografia, Kate Kirkpatrick comenta que:

"Em seus dias de folga, [Beauvoir] saía de manhã cedo para caminhar —começou com caminhadas de cinco ou seis horas por dia e foi aumentando gradualmente, percorrendo grandes distâncias, em velhos vestidos e alpargatas. Ela pedia carona, apesar da preocupação de amigos e colegas: era perigoso para uma mulher andar sozinha e ela passou por alguns apertos. Mas gostava da solidão de andar e achava que esse passatempo a salvava do tédio, da depressão e do arrependimento. Simone se tornou compulsiva com terminar as rotas que planejava —às vezes, correndo riscos extremos".

Há mesmo quem diga que as caminhadas tenham deixado uma marca no pensamento de Beauvoir. Não duvido. Para mim, no entanto, o importante mesmo é o prazer e o espírito de aventura que ela muitas vezes expressa em suas correspondências e escritos autobiográficos ao nos contar sobre as próprias andanças.

Em "A Força da Idade" (1960), por exemplo, Beauvoir comenta da preocupação de algumas de suas colegas de que pudesse sofrer violência nas estradas. Ela pondera: "Não desejava tornar insípida a minha vida com prudências (...) com um pouco de vigilância e de decisão, a gente se safava sempre de tudo. Não lamento ter alimentado durante muito tempo essa ilusão, porque dela extraí uma audácia que me facilitou a existência".

Costumo pensar nessa citação de Beauvoir quando estou na bicicleta ou correndo, pois são muitos os cálculos que uma mulher precisa fazer antes de sair de casa para exercitar-se sozinha: horários, trajetos, roupas e acessórios carecem de ser zelosamente estudados na tentativa de evitar algum incidente.

Assim, quando estive no Recife em setembro deste ano, muita gente me alertou de que eu não deveria correr pelas ruas da cidade como costumo fazer quando estou em Cork, na Irlanda; ocorriam muitos assaltos próximos à casa da minha tia, onde geralmente fico hospedada. Mas depois da pandemia e de quase três anos sem visitar a minha cidade, resolvi arriscar.

No começo foi difícil, pois qualquer movimentação fora do normal já me deixava um pouco tensa. Depois relaxei e passei a usufruir da sensação de liberdade que a boa corrida proporciona.

Só que, desta vez, eu estava em casa e foi muito gostoso passar correndo em frente da minha antiga escola, acenar para amigos e conhecidos, atravessar as pontes que cortam o Capibaribe e avistar as capivaras que lhe emprestam nome.

É muito diferente correr e pedalar onde temos uma história. Depois de tanto tempo longe, esses exercícios foram essenciais para que eu voltasse a me reconhecer na cidade, a reviver, inclusive, pequenas alegrias da minha época de menina, quando acompanhava o meu pai em sua ginástica no Quartel do Derby só para depois dividirmos uma paçoquinha na banca de revista que ficava logo ao lado.

Sigo me exercitando desde março deste ano e espero conseguir manter esse hábito durante os próximos meses, pois quando penso na minha próxima viagem ao Recife, quero novamente ser capaz de viver a cidade a pé ou de bicicleta, a deixar com que cada nova sensação ou detalhe percebido na paisagem sejam capazes de restaurar os meus laços com a minha terra.

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