Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque
Descrição de chapéu Livros

Philip Roth, que faria 90, explorou paralisia que vem de senso de responsabilidade

'Nêmesis' expressa tentativa do escritor de entender por que sobreviventes de tragédias podem ser consumidos pela culpa

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Se estivesse vivo, Philip Roth (1933-2018) teria completado 90 anos o último domingo (19). Autor de mais de 30 livros, muito do que Roth escreveu causou polêmica.

Hoje, no entanto, cinco anos após a sua morte, talvez seja o momento de começarmos a refletir um pouco mais seriamente a respeito do que a sua obra pode nos ensinar sobre o que significa para o indivíduo ter de lidar com o peso das próprias expectativas com relação a todas as coisas que ele acredita ser capaz de realizar.

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Philip Roth em sua casa, em Nova York, em 2018, ano de sua morte - Philip Montgomery - 5.jan.18/The New York Times

Logo nas primeiras páginas de "Roth Libertado: o Escritor e Seus Livros", publicado no Brasil em 2015, Claudia Roth Pierpont comenta que, ainda no início da década de 1960 —antes mesmo de o autor alcançar o estrelato com a publicação de "O Complexo de Portnoy", em 1969—, o crítico literário Alfred Kazin se mostrou bastante perspicaz ao definir Roth como um artista interessado em contar histórias sobre personagens que tentam viver de acordo com noções irrealizáveis de si mesmos.

Pierpont chama a nossa atenção para o comentário de Alfred Kazin porque considera que ele seja revelador de uma das características que melhor definem, do começo ao fim, a obra de Roth. Algo que somente pude confirmar recentemente ao concluir a leitura do último romance do escritor.

Publicado em 2010, "Nêmesis" nos propõe uma reflexão sobre se, em algum momento, o nosso senso de responsabilidade pode deixar de ser uma virtude para se tornar algo debilitante, capaz de destruir as nossas vidas. O livro conta a história de como Bucky Cantor atravessou a epidemia de pólio que atingiu os Estados Unidos durante o verão de 1944, na mesma época em que soldados americanos desembarcavam na Europa para enfrentar o Exército nazista nas praias da Normandia.

Bucky trabalhava como professor de educação física em uma das escolas de Weequahic, um bairro de população judia em Newark, Nova Jersey. Forte, disciplinado e corajoso, ele aparentava preencher todos os requisitos de um verdadeiro soldado, mas também tinha problemas de visão. Em razão disso, acabou sendo dispensado do serviço militar e, consequentemente, deixado de fora da guerra, fazendo com que ele se sentisse excluído de uma das mais significativas experiências daquela geração de rapazes.

Assim, em uma tentativa de não se sentir totalmente alheio ao destino dos seus contemporâneos, Bucky resolve lidar com a epidemia de pólio como se estivesse liderando soldados em um campo de batalha, tomando para si toda a responsabilidade pelo bem-estar dos meninos que frequentavam a área de recreio da vizinhança durante aquele verão. Afinal, segundo o personagem, aquela também era uma guerra de matança, ruína e desolação, que estava sendo especialmente cruel com as crianças judias de Newark.

No começo de março, participei de um debate sobre "Nêmesis" com Isadora Sinay, autora de "Você Não Deve Esquecer Nada: Memória e Identidade na Ficção de Philip Roth", no qual abordamos as diversas maneiras em que o livro aparenta reproduzir elementos que remetem o leitor às imagens e aos questionamentos que encontramos na literatura de testemunho do Holocausto.

Algo que, por sua vez, acaba nos dando a impressão de que Roth talvez estivesse buscando adaptar aspectos do que se passou na Europa para descrever um drama local, em uma tentativa de procurar entender e lidar com as consequências de uma tragédia que ele não viveu (este, aliás, é um dos temas da tese de doutorado que deu origem ao livro de Isadora Sinay).

O próprio título do romance dá margem a essa interpretação. Nêmesis é uma palavra com mais de um significado. Ela tanto pode ser empregada no seu sentido corriqueiro, enquanto sinônimo de rival ou inimigo, quanto pode remeter à personagem homônima da mitologia grega que combate a desmesura.

Em "Nêmesis", esses dois significados aparentam estar entrelaçados. Por um lado, o livro conta a história de um rapaz comum atormentado por um senso de responsabilidade que desconhece limites e que exige de si muito mais que ele tem a oferecer. Por outro, o romance também pode ser lido como uma tentativa de Roth de entender por que, muitas vezes, quando alguém escapa ou sobrevive a uma tragédia, acaba sendo consumida pela culpa.

"Nêmesis" pode até não ser a melhor obra de Philip Roth, mas é uma leitura cujos efeitos permaneceram comigo durante essas últimas semanas. Assim, deixo aqui o meu convite para que vocês também leiam esse livro e comemorem comigo os 90 anos do seu autor.

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