Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Leituras têm impacto especial quando estamos doentes

Ficar acamado nunca é divertido, mas a companhia de um bom livro é sempre bem-vinda

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Longos períodos de convalescência são ideais para quem deseja colocar a leitura em dia. Sempre que estou doente, busco a companhia de um livro. Agora mesmo, enquanto me recuperava de uma infecção por Covid em plena temporada de festas, a primeira coisa que fiz foi encher uma mochila com material de leitura e carregá-la comigo para a cama.

Este é um hábito que me acompanha desde menina, quando os meus pais procuravam algo para me entreter nos momentos em que eu não estava bem. Assim, lembro de receber muitos livros e revistas de quadrinhos quando precisava ficar de molho, me recuperando de algum processo alérgico, de uma gripe ou mesmo de um acidente.

Pacientes em hospital de Tianjin, na China - Noel Celis - 28.dez.22/AFP

A leitura, nessas circunstâncias, nos ajuda a combater o tédio e a inquietação. Não sei se isto também acontece com vocês, mas é justamente quando estou doente que paro para questionar a vida e refletir sobre o que preciso fazer para ser uma pessoa minimamente satisfeita.

Não sou, nem nunca fui uma doente fácil. Bastam dois dias de cama para me deixar angustiada. Sou inquieta, gosto de trabalhar e de me mexer, e fico de mau humor quando percebo que o meu corpo pede arrego.

A impossibilidade de realizar tarefas simples e corriqueiras como tomar banho de cabeça, cozinhar ou ir ao supermercado para comprar frutas faz com que a minha imaginação antecipe cenários em que não terei mais condições de viver sozinha e de fazer as minhas coisas por conta própria.

Assim, ao constatar a fragilidade e o desconforto causados pela doença, é bastante comum que eu me pergunte se estou levando uma boa vida, se realmente estou a fazer o melhor para mim e para as pessoas que, de alguma forma, contam comigo e apostam na minha felicidade. Nesses momentos, a leitura me resgata e ajuda a superar a angústia.

A convalescência, como toda quebra de rotina, faz com que a nossa relação com o tempo seja alterada. Quando estamos acamados, perdemos a noção da hora. Acordamos tarde, dormimos cedo e passamos as noites entre o sono e a vigília, a querer adiantar os ponteiros do relógio.

Toda essa confusão faz com que acabemos voltando a nossa atenção para nós mesmos, em uma tentativa de mantermos a ilusão de que temos controle sobre algo. Assim, doentes, achamos que não nos resta outra coisa a não ser pensar compulsivamente sobre as nossas vidas.

Ler —o ato de tomar um livro nas mãos e virar as suas páginas uma por uma, em uma sequência crescente e determinada, pacientemente acompanhando o desenrolar de uma história e me esforçando para entender as implicações do que está no papel— é algo que sempre me ajuda a sair de um estado de obsessiva preocupação comigo mesma.

Isto é, de uma situação mental potencialmente indutora de ansiedade, em que os pensamentos se sucedem rápida e desordenadamente, atropelando uns aos outros, sem permitir com que eu realmente possa analisá-los.

Tenho para mim que a disciplina inspirada pela leitura, ao permitir com que nos tornemos mais atenciosos e pacientes para acompanharmos uma trama do começo ao fim, também seja capaz de restaurar certa impressão de rotina na vida de quem está acamado, ajudando-o mais uma vez a emprestar ordem, ritmo e propósito às suas reflexões.

Talvez seja por isso, não tenho certeza, que as leituras feitas durante os nossos períodos de convalescência acabam se tornando tão determinantes para nós, como se elas possuíssem uma dimensão transformadora. Consultando a memória, identifico alguns dos livros que me marcaram ao longo dos anos e percebo que muitos foram lidos justamente quando eu estive de cama. Mas será que eles teriam tido o mesmo impacto em minha vida caso eu os tivesse encontrado em outro momento?

Penso que não. Ao menos no meu caso, os longos períodos de convalescência têm o efeito de suavizar algumas das minhas resistências, fazendo com que eu me sinta um pouco mais disposta a conhecer a obra de autores que normalmente não encontrariam lugar entre as minhas preferências.

Essa é provavelmente uma das razões pelas quais a gente tenha a impressão de que essas leituras de alguma maneira operam uma transformação em nossas vidas. Pois, se estamos lendo algo interessante, porém diferente de quase tudo aquilo a que geralmente temos acesso, então, realmente faz sentido achar que algo em nós esteja mudando graças àquela leitura.

Neste período de Covid, por exemplo, uma das coisas que eu li foi "The Women Are Up to Something" (as mulheres estão tramando algo), de Benjamin J.B. Lipscomb, recente biografia das filósofas Elizabeth Anscombe, Mary Midgley, Philippa Foot e Iris Murdoch.

Além de ampliar o meu conhecimento sobre a vida e a obra dessas autoras, me levando, inclusive, a voltar a consultar alguns dos seus trabalhos, esta leitura também me fez refletir sobre o importante papel que as amizades podem desempenhar em nosso desenvolvimento intelectual e sobre os obstáculos que persistem em afetar a trajetória das mulheres na filosofia.

Acho que esse era o livro que eu precisava ler, agora, às vésperas de reiniciar o ano letivo, quando tenho de me sentar para corrigir provas, preparar as aulas do semestre e pensar em como melhor avançar as minhas pesquisas.

Ficar doente nunca é divertido, mas a companhia de um bom livro é sempre bem-vinda, principalmente quando ela nos empresta novas ferramentas para enfrentar os desafios que nos são impostos pela vida.

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