Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque
Descrição de chapéu Enem greve

Como lidar com autores fundamentais, mas de comportamento reprovável?

Denúncia de assédio sexual contra Boaventura de Sousa Santos traduz inquietação comum na relação com obras importantes e seus criadores

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Em sua mais recente coluna no UOL, Natalia Timerman questiona como devemos nos relacionar com a obra de intelectuais acusados de assédio, a exemplo do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, professor emérito da Universidade de Coimbra, cujo suposto comportamento abusivo foi exposto em um artigo acadêmico produzido por três alunas da instituição.

Não sou leitora de Boaventura de Sousa Santos. Portanto, não saberia julgar a importância da sua obra para a sociologia do direito, mas gostei dos questionamentos propostos por Natalia em sua coluna, pois traduzem muito bem algumas das inquietações que vivencio no meu cotidiano de trabalho.

O filósofo alemão Martin Heidegger em foto tirada em 1949 - Reprodução

Afinal, tanto na docência como na atividade de pesquisa, lido com a obra de autores incontornáveis, porém controversos, cujos posicionamentos e atitudes, quando não nos chocam pura e simplesmente, acabam frustrando a nossa expectativa de como alguém vocacionado para uma atividade tão nobre, como a arte e a produção de conhecimento, deveria se comportar.

Um autor é incontornável não apenas pela qualidade de seu trabalho, como também pela quantidade de indivíduos que interagem com as suas criações de modo a estruturar os seus respectivos feitos artísticos e intelectuais, tornando o autor original indispensável para a compreensão de determinado conjunto de obras.

Quando estou em sala de aula, costumo lançar a advertência de que o peso da influência filosófica e literária de um autor muitas vezes independe do tipo de pessoa que ele realmente foi ou aparenta ser, pois, em grande medida, a relevância de uma obra para a nossa cultura geralmente transcende os méritos da biografia do seu criador.

Isso costuma ser assim porque toda obra tem a capacidade de inaugurar uma espécie de diálogo com uma tradição artística ou de pensamento, e quem mantém esse diálogo vivo somos nós, os leitores, que localizamos nela um ponto de partida para o desenvolvimento de nossas próprias inquietações.

Neste sentido, quando estudamos os textos de um escritor ou filósofo, constatamos que o seu trabalho é frequentemente muito mais do que ele acreditava ser e um pouco menos do que esperávamos que fosse. Essa confirmação, por sua vez, é responsável por nos permitir exercitar a nossa criatividade de modo um pouco mais livre e desimpedido, através de inúmeros jogos de apropriação, inversão e crítica.

Outra coisa que complica a relação com a obra de artistas e intelectuais polêmicos é a nossa intuição de que determinados aspectos das suas criações podem ser interpretados como sendo a expressão de algo que eles gostariam de entender melhor e incorporar para si.

Por exemplo, quando um autor escreve assiduamente sobre um tema importante como a justiça, isso não quer dizer que ele seja uma pessoa naturalmente justa, mas que ele talvez seja alguém para quem a justiça representa um enigma a ser decifrado.

O problema, portanto, não é se devemos ler o que foi escrito por gente de moral duvidosa, suspeita de ser preconceituosa e mesquinha, mas o que devemos fazer para não criar falsas expectativas sobre a personalidade dessas pessoas, baseando-nos, quase que unicamente, naquilo que conhecemos sobre a sua virtuosidade artística e capacidade intelectual.

Ou seja, não devemos nos comportar com relação a esses autores como se houvéssemos sido seduzidos pelo seu brilhantismo e, consequentemente, perdido a nossa autonomia de pensamento.

Um caso extremo que talvez possa nos ajudar a compreender o que devemos fazer com a obra de autores problemáticos ou, até mesmo, monstruosos diz respeito ao pensador alemão Martin Heidegger, cujo envolvimento com a ideologia nazista acabou fazendo com que, nos últimos anos, estudiosos finalmente questionassem a sua posição como um dos grandes nomes da filosofia do século 20.

Em entrevista em janeiro ao site da Yale University Press, o historiador Richard Wolin, autor de "Heidegger in Ruins: Between Philosophy and Ideology" (2023), reflete sobre o cuidado que devemos ter ao lidar com a obra do filósofo.

Segundo Wolin, qualquer pessoa interessada em estudar o pensamento de Heidegger deveria ser capaz de reconhecer e explicar como o posicionamento ideológico do filósofo se comunica com a sua obra, pois, ao evitar esse tipo de reflexão, ela estaria inevitavelmente correndo o risco de conduzir a própria análise de modo falso e desonesto.

Em suma, a melhor maneira de lidarmos com a obra de um autor polêmico e controverso, porém incontornável, é aprendendo a abordar um texto com seriedade, sem achar que para isso precisamos renunciar ao exercício da nossa capacidade de propor questionamentos e pensar por conta própria.

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