Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Livro sobre judeu que fugiu de Auschwitz examina nossa relação com a monstruosidade

Rudolf Vrba denunciou matança no campo de concentração, mas seu testemunho foi recebido com ceticismo

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Concluí recentemente a leitura de "The Escape Artist" (o artista da fuga), premiado livro de 2022 do jornalista Jonathan Freedland sobre Rudolf Vrba, o bioquímico judeu de origem eslovaca que, ainda adolescente, fugiu de Auschwitz-Birkenau e alertou o mundo sobre o que acontecia nos campos de concentração e extermínio.

Nascido em 1924, Vrba tinha apenas 15 anos quando precisou interromper formalmente os estudos devido às imposições do regime fascista de Jozef Tiso, aliado do Terceiro Reich. Aos 17 anos, ele tentou deixar a Eslováquia através da fronteira com a Hungria, mas foi pego e encaminhado para um campo de trânsito. De lá, planejou nova fuga, fracassou e foi transportado, primeiro para Majdanek e, depois, para Auschwitz-Birkenau, onde permaneceu de junho de 1942 a abril de 1944, quando finalmente conseguiu escapar.

Prisioneiros judeus desembarcando de trem no campo de concentração Auschwitz-Birkenau, na Polônia - Arquivos Yad Vashem - 27.mai.44/AFP

Durante todo o tempo em que esteve em Auschwitz, Vrba foi forçado a trabalhar em vários setores do campo, acumulando cada vez mais conhecimento do que estava acontecendo, e tinha esperança que, se um dia realmente conseguisse fugir, poderia compartilhar o que sabia, evitando que a matança seguisse o seu curso.

O que motivava os seus planos de fuga era a crença de que, se as pessoas soubessem a verdade sobre Auschwitz, teriam como encontrar ajuda e se proteger. Dia após dia, Vrba contava os comboios que chegavam ao campo, vindos de toda a Europa, e calculava o número de pessoas que seriam enviadas para as câmaras de gás. Quanto mais esses números cresciam, mais ele se inquietava, pois reconhecia que a sua fuga estava se tornando urgente.

No começo de 1944, Vrba tomou conhecimento que os nazistas estavam otimizando o acesso dos trens ao campo para receber cerca de um milhão de judeus húngaros que seriam despachados para as câmaras de gás nas semanas seguintes.

Em abril, ele finalmente conseguiu escapar na companhia de um amigo e conterrâneo, Alfréd Wetzler. Com extrema dificuldade, os dois retornaram para a Eslováquia, entraram em contato com líderes da resistência judaica e produziram um longo e detalhado relatório sobre tudo o que testemunharam em Auschwitz.

Em seu livro, Freedland comenta o processo de escrita do relatório Vrba-Wetzler. Ele explica que o documento foi cuidadosamente redigido, de modo a não levantar dúvidas sobre a autenticidade das suas fontes, mas também chama a atenção para o fato de que, mesmo diante dos relatos de Vrba e Wetzler, teve gente que não conseguiu acreditar de imediato que uma nação como a Alemanha, um dos bastiões da cultura europeia, seria capaz de perpetrar semelhante crime.

Era como se, de tão alarmantes e monstruosas, aquelas informações já não fizessem mais sentido porque as pessoas não conseguiam encontrar um lugar para o inferno de Auschwitz entre todas as coisas que conheciam do mundo.

Freedland explica que, em parte, tal estado de dúvida e confusão mental era resultado das estratégias de dissimulação empregadas pelos nazistas na tentativa de acobertar o que estavam atentando contra os judeus da Europa. O próprio Vrba só passou a ter real noção do perigo que todos corriam quando já estava dentro do campo de concentração e extermínio.

Ao recontar a difícil e extraordinária história de Rudolf Vrba, um dos objetivos de Freedland foi justamente nos fazer refletir sobre a nossa relação com a verdade. Pois, segundo ele, embora o relatório de Vrba e Wetzler tenha ajudado a salvar a vida de pelo menos 200 mil judeus húngaros, Vrba sempre esteve convencido que o documento poderia ter poupado do sofrimento um número muito maior de pessoas caso todos tivessem tido amplo e irrestrito acesso à informação.

Freedland, no entanto, mostra que, embora autoridades em Washington, Londres e até mesmo no Vaticano houvessem sido informadas sobre Auschwitz através do relatório de Vrba e Wetzler, se estabeleceu, ainda assim, um hiato entre o conhecimento dos fatos e as ações para tentar salvar os judeus.

Por um lado, esse hiato foi instaurado por questões de ordem prática, como a dificuldade de se organizar uma operação para bombardear as linhas de trem que serviam ao campo. Por outro, ele foi alimentado pelo preconceito de burocratas, alguns dos quais se queixavam que os judeus só podiam estar exagerando.

Neste sentido, o livro de Freedland também é um lembrete de como velhos preconceitos muitas vezes nos impedem de enxergar injustiças e tragédias, criando obstáculos para que as minorias possam se fazer ouvir, em uma dolorosa tentativa de provar que são merecedoras da nossa solidariedade.

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