Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque
Descrição de chapéu Livros

Nas disputas entre críticos e escritores, quem sai ganhando são os leitores

Apesar de contendas não passarem de encenação, público tende a se engajar como em batalha do bem contra o mal

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Soube recentemente que Philip Roth tomou Irving Howe como modelo para desenvolver um dos personagens de "A Lição de Anatomia" (1983), o crítico literário Milton Appel, desafeto do protagonista, Nathan Zuckerman.

Howe foi um dos críticos que mais celebraram a estreia de Roth em "Adeus, Columbus" (1959), afirmando que as histórias da coletânea expunham algumas das questões que tanto afetavam os judeus americanos daquela geração. Anos mais tarde, no entanto, com a publicação de "O Complexo de Portnoy" (1969), Howe se transformaria em um crítico ferrenho do autor, acusando-o de ter escrito um livro que, embora não fosse antissemita, era cheio de desprezo pela vida judaica.

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Philip Roth em sua casa, em Nova York, em 2018, ano de sua morte - Philip Montgomery - 5.jan.18/The New York Times

Claudia Roth Pierpont, autora de "Roth Libertado", comenta que os primeiros leitores de "A Lição de Anatomia" ficaram desconcertados com as semelhanças entre Howe e Appel, achando que Roth talvez tivesse ido longe demais ao atribuir a Zuckerman uma raiva que, na verdade, era sua. John Updike chegou a afirmar que, ao atingir a maturidade, um artista deveria se mostrar capaz de deixar de lado as intrigas do passado.

Questionado sobre o veneno que destilou contra Howe ao conceber o personagem, Roth teria respondido: "Eu estava retratando um escritor —e o que é mais característico do que sentir raiva de um crítico?".

Apesar de soar caricata, a observação de Roth faz sentido. Afinal, as biografias dos nossos autores prediletos estão repletas de episódios em que eles aparentam estar em pé de guerra com os críticos.

Essas disputas, contudo, nem sempre ficam restritas ao debate literário, podendo evoluir para a agressão verbal ou até mesmo culminar em violência física. Na década de 1930, o New York Times noticiou que Ernest Hemingway havia atacado Max Eastman. Os dois foram aos tapas dentro do escritório do editor Max Perkins após trocarem provocações sobre o que Eastman havia escrito em uma resenha de "Morte à Tarde" (1932), que sugeria, entre outras coisas, que Hemingway não aparentava ser alguém seguro da própria masculinidade e que, dessa sua característica, resultava um estilo literário que fazia os demais escritores influenciados por ele também fingirem possuir "um peitoral cabeludo".

Existem também disputas que tem por objetivo o silenciamento e o assassinato de uma reputação. Na década de 1960, quando Hannah Arendt publicou "Eichmann em Jerusalém", Irving Howe, novamente ele, e Lionel Abel organizaram um evento em Nova York para condenar a obra da filósofa que, na ocasião, estava fora da cidade. Segundo o poeta Robert Lowell, que esteve presente durante a discussão: "O encontro mais parecia um julgamento ou o apedrejamento de um membro proscrito da família".

Em 1903, Rainer Maria Rilke enviou uma carta ao então jovem poeta Franz Xaver Kappus advertindo-o de que ele deveria, sempre que possível, evitar entrar em contato com textos produzidos por críticos e estetas, pois, segundo Rilke, a arte é um trabalho solitário, somente capaz de ser compreendido através do amor.

O que os críticos escrevem, no entanto, "ou são considerações parciais, petrificadas, que se tornaram destituídas de sentido em sua rigidez sem vida ou são hábeis jogos de palavras, nos quais hoje uma visão sai vitoriosa, amanhã predomina a visão contrária".

Concordo. Mas as disputas entre críticos e escritores sempre acabam chamando a atenção do público, que, geralmente, tenta se mobilizar a favor ou contra uma das partes, como se estivesse presenciando uma batalha do bem contra o mal, quando o correto seria acompanhar a desavença como quem assiste a um espetáculo de luta livre.

Isto é, permanecendo consciente de que, embora os lutadores aparentem estar no ringue para lutar até as últimas consequências, tudo não passa de uma encenação. Afinal, se nos mantivermos atentos, perceberemos que, não importa o nível do debate, escritores e críticos, ainda que não estejam totalmente cientes disso, também estão interagindo conforme uma elaborada coreografia.

Nunca deixei de ler algo por conta da crítica, mas aprendi com ela a enxergar as limitações dos meus autores prediletos. Acho isso importante, porque nenhum artista é completo e, assim, paradoxalmente, à medida que percebemos as suas deficiências, vislumbramos também o que empresta valor à sua obra.

Enfim, nas disputas entre críticos e escritores, quem sai ganhando somos nós, leitores, porque somos lembrados que nem o autor tem a última palavra sobre o que escreve, nem o crítico é infalível, sendo este, portanto, incapaz de esgotar todos os modos de se apreciar um texto.

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