Obra de Hannah Arendt é a mais profunda sobre liberdade política, diz professor

Richard J. Bernstein lança no Brasil livro sobre pensamento da filósofa e discute, em entrevista, atualidade de seus conceitos

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Nádia Junqueira Ribeiro

Jornalista e doutoranda em filosofia na Unicamp

Adriano Correia Silva

Professor de filosofia na UFG (Universidade Federal de Goiás)

[RESUMO] Amigo e profundo conhecedor da obra de Hannah Arendt, o professor Richard J. Bernstein, 89, comenta em entrevista seu livro introdutório ao pensamento da célebre filósofa e explica como a obra dela, marcada pela independência frente a partidos e ideologias, segue viva e explica os tempos conturbados atuais.

Richard J. Bernstein tinha 40 anos e Hannah Arendt tinha 66 quando se conheceram no Haverford College, na Pensilvânia, em 1972. Ele era professor daquela instituição, enquanto ela estava ali para fazer uma palestra.

Arendt já era uma pensadora consagrada, professora da New School for Social Research, mundialmente conhecida por suas obras, como "Eichmann em Jerusalém", "Sobre a Revolução", "A Condição Humana" e "Origens do Totalitarismo", além de dezenas de artigos e ensaios.

Bernstein havia acabado de publicar seu segundo livro, "Praxis and Action: Contemporary Philosophies of Human Activity". Seria natural que ele estivesse interessado no trabalho de Arendt, em conhecê-la pessoalmente e a abordasse, ao final da palestra, dizendo que admirava seu trabalho.

Richard J. Bernstein, filósofo e professor na New School for Social Research - The New School.edu/Reprodução

O que aconteceu foi justamente o contrário: Arendt foi quem quis conhecer Bernstein porque havia acabado de ler esse livro seu.

Depois daquela palestra, Arendt e Bernstein saíram para jantar e ficaram conversando das 20h às 2h. Ou melhor, discutindo e discordando um do outro. Bernstein diz que aquele encontro na Pensilvânia marcou o início da amizade entre os dois, que duraria três anos, até a morte de Arendt, em 1975.

Mesmo depois disso, contudo, a presença de Arendt continuou viva para Bernstein. Ele foi admitido em 1989 no Departamento de Filosofia na New School for Social Research, onde Arendt lecionou até os últimos dias de sua vida.

Aos 89 anos, Bernstein segue ativo. Publicou "Por que Ler Hannah Arendt Hoje?" em 2018, provando a atualidade do pensamento de filósofa. A obra chega ao Brasil pela editora Forense Universitária, com tradução dos autores deste texto. O lançamento ocorre na próxima quarta-feira (1º), durante o 13º Encontro Internacional Hannah Arendt, realizado virtualmente pela Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), com uma conferência de Bernstein.

Autor de vários outros livros e artigos sobre Arendt, ele comenta no título que chega agora ao Brasil importantes conceitos da autora, recupera elementos da sua vida, recoloca debates polêmicos provocados por ela e apresenta como eles nos servem para pensar os tempos sombrios vividos por nós hoje.

O diálogo estabelecido por Bernstein com Arendt foi constante, cuidadoso, comprometido com a independência do pensamento e com a trajetória da autora, sem se furtar em ser crítico ou a discordar dela. Todos esses traços permeiam essa obra. Bernstein compartilha com Arendt o desejo de compreender seu próprio mundo e a convicção de que essa compreensão implica a necessidade de criar novos conceitos e articulações para abarcar fenômenos novos, em vez de buscar encaixar esses fenômenos em padrões de julgamento preconcebidos.

Ambos acreditavam que temos que "pensar sem corrimão", mais ainda em tempos de crise. Nesta entrevista, Bernstein conta como surgiu a ideia de escrever esse trabalho e indica como o pensamento de Arendt está mais atual que nunca.

Você tem cultivado uma longa interlocução com Arendt há quase 50 anos, quando discutiu com ela pessoalmente sobre diversos temas filosóficos. Contudo, esse é seu primeiro trabalho como introdução ao pensamento dela. Trata-se de um diálogo crítico, mas claramente um convite à leitura da obra de Arendt e uma defesa à atualidade do seu pensamento. Como se deu a decisão de desenvolver essa proposta de trabalho agora? Eu comecei a me interessar pelo trabalho de Arendt quando a conheci, em 1972. Na época, ela era bem conhecida por seu livro sobre Eichmann, mas poucos estavam cientes do inteiro alcance do seu pensamento. Embora eu fosse muito mais jovem que ela, fomos atraídos um pelo outro. Nós nos correspondemos e nos encontramos várias vezes antes de sua morte, em 1975.

Com o passar dos anos, voltei a discutir sua obra muitas vezes. Encontro-me em diálogo contínuo com ela. Depois que Trump foi eleito, em 2016, referências a Arendt estavam em todas as redes sociais. Meu editor na Polity Press, John Thompson, instigou-me a escrever um pequeno livro sobre Arendt.

Meu objetivo foi apresentar a amplitude de sua obra e encorajar as pessoas a ler seus livros fundamentais. Agora, meu livro já foi traduzido para 12 idiomas.

Em uma correspondência em 1963, ao enfrentar a controvérsia Eichmann, Arendt disse: "O problema é que eu sou independente. Não pertenço à nenhuma organização e sempre falo por mim mesma". Em diferentes situações, você enfatiza como preza a independência de pensamento de Arendt. Poderíamos dizer, contudo, que Arendt permanece malcompreendida porque nunca se filiou a nenhum "ismo", nem mesmo ao sionismo. Liberais a acusam de ser marxista. Marxistas dizem que ela é uma liberal. O que você poderia dizer sobre o modo arendtiano de pensar? Sempre pensei em Arendt como uma pensadora independente. Ela não pertence a nenhuma escola ou partido. Ela aborda cada tópico com frescor e perspicácia. Ela não é uma pensadora de esquerda nem de direita, mas o que ela escreve é sempre estimulante. Ela encoraja a pessoa a "parar e pensar".

Vocês provavelmente conhecem o comentário que ela fez no primeiro congresso sobre sua obra, em 1972. Perguntaram se ela estava à direita ou à esquerda. Ela respondeu à pergunta de maneira brilhante, afirmando que as questões importantes de nosso tempo não seriam respondidas nesses termos.

Pensadores conservadores e de esquerda frequentemente a atacam porque ela é muito independente. Penso que ela apresenta a análise mais original e profunda da liberdade política. Durante toda a sua vida, ela procurou restaurar a dignidade da política.

O que não significa que ela não caia em algumas contradições ao promover esse modo independente de pensar. Um de seus grandes pontos cegos foi sua compreensão do racismo nos EUA. Em suas "Reflexões sobre Little Rock", ela impôs suas categorias do social e do político. Argumentei que a maneira como ela distingue o político e o social não é adequada.

Arendt se opôs fortemente à imposição federal da integração nas escolas públicas, quando, em 1954, a Suprema Corte dos Estados Unidos decretou por unanimidade que a segregação das escolas públicas violava a 14ª emenda da Constituição.

Usando categorias que ela havia elaborado em "A Condição Humana", ela estabeleceu uma distinção rígida entre o político, o social e o privado. Ela afirmava que a discriminação social não poderia ser proibida por meios políticos.

Se pais brancos queriam enviar suas crianças para escolas onde existissem apenas crianças brancas, o governo não tinha o direito de interferir. Arendt falhou em compreender as consequências desastrosas da hostil discriminação política, social e econômica dos negros nos EUA.

Ela falhou em compreender como se abusou do apelo aos "direitos dos estados" para impor todo tipo de práticas discriminatórias horríveis contra os negros.

Arendt, que acreditava que o pensamento deve estar enraizado nas experiências vividas, se dedicou à compreensão dos fenômenos de massa e de refugiados, uma experiência vivida por ela mesma. Ela alertou sobre como as tensões entre Estado e nação poderiam aumentar o número de pessoas vivendo em campos de refugiados. Hoje em dia, essa crise parece ter se intensificado. Como a noção de Arendt sobre o direito a ter direitos nos ajuda a compreender esse fenômeno? Por causa da experiência de Arendt como apátrida, ela foi uma das primeiras teóricas a ser sensível ao infortúnio dos apátridas e refugiados. Ela escreveu sobre a situação com grande sensibilidade e discernimento. Ela previu que o problema dos refugiados seria uma das maiores questões de nossa época.

Suas reflexões sobre o "direito a ter direitos" ainda são relevantes hoje porque muitos refugiados estão vivendo em campos onde não têm direitos nem qualquer sentido de comunidade política.

Qual outro pensamento de Arendt abordado em seu livro você destacaria para nos ajudar a pensar os desafios de hoje? Muito antes do discurso atual sobre "fatos alternativos", Arendt reconheceu os perigos políticos do obscurecimento da distinção entre verdade e falsidade. Seu brilhante ensaio "Verdade e Política" mostra como ela abordava os perigos que encontramos hoje.

Se Arendt pudesse testemunhar o mundo de hoje, ela certamente concordaria que vivemos tempos sombrios. Mas, apesar de ser uma dura crítica da modernidade, ela acreditava que podemos encontrar novos começos mesmo nos tempos mais escuros. Como podemos encontrar iluminações para o nosso tempo? Uma das categorias fundamentais no pensamento de Arendt é a de natalidade. Não importa quão sombrios sejam os tempos, sempre existe a possibilidade de novos começos quando as pessoas agem juntas. O começo, disse ela, é a manifestação da liberdade humana. Essa é agora a esperança para o futuro.

Por que Ler Hannah Arendt Hoje?

  • Preço R$ 51,75 (152 págs.); R$ 41,65 (ebook)
  • Autor Richard J. Bernstein
  • Editora Forense Universitária
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