Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque
Descrição de chapéu Filmes Barbie

Filme da Barbie me lembrou por que nunca gostei de bonecas

Quem precisa de manequim loira e esbelta quando se cresce cercada por bichos e plantas?

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Fui ao cinema assistir ao filme da Barbie e refletir sobre o meu frágil relacionamento com a boneca. Optei por uma sessão na hora do almoço, pedi para uma mãe tirar uma foto minha dentro de uma versão gigante da caixa da Barbie, comprei pipoca e enfrentei quase duas horas de filme sozinha, ao lado de duas crianças desconhecidas.

Fiz de tudo para me emocionar com o drama existencial da boneca, mas não consegui. Nada me convenceu de que estávamos diante de um dos melhores filmes do ano —e acredito que essa seja uma deficiência exclusivamente minha, pois não sou tiete da Barbie, nem nunca gostei de brincar de boneca.

Margot Robbie em cena do filme "Barbie", dirigido por Greta Gerwig
Margot Robbie em cena do filme "Barbie", dirigido por Greta Gerwig - Divulgação

Cresci em uma casa com quintal, cercada por bichos e plantas de todas as espécies. Tive cachorro, peixe, tartaruga, pombo, galinha, gato e rã.

Fiz plantação de pé de feijão; subi em árvore para colher pitanga, manga, goiaba e carambola; aprendi a fazer bolinha de sabão usando o canudo da folha do mamoeiro; pulei muro; tomei banho de mangueira; construí cabana; cavei buracos enormes bem no meio do jardim da minha mãe; fiz fogueira e assei milho e queijo coalho no palito.

Quando não estava ocupada no quintal de casa, passeava de bicicleta com meus pais, desbravava a cidade, conhecia o mangue e invejava os meninos que pegavam siri na lata e nadavam no Capibaribe.

Os meus pais compravam frutas e ração no mercado da Boa Vista, e com os trocados que juntava no meu cofrinho durante a semana, adquiria coisas de primeira necessidade: corda, pilha, estilingue, caderneta e lápis de cor.

Acho que é por isso que a Barbilândia nunca chegou a fazer parte do meu imaginário. Na minha turma, só quem realmente brincava de boneca era quem morava em apartamento. Quem morava em casa, como eu, estava quase sempre ocupada com alguma outra invenção.

Assim, quando ganhei minha primeira e única Barbie, passei alguns minutos olhando para o pequeno manequim loiro e esbelto sentado em uma bicicleta ergométrica cor de rosa —e logo fui arrumar outra coisa para fazer.

Barbie e eu não fomos feitas uma para a outra. Se em algum momento ela conseguiu entrar na minha vida, foi porque eu já não aguentava mais ter de me justificar para as outras meninas da escola. "Por que você não veste rosa? Por que você não dança com a gente na hora do recreio? Por que você faz judô? Por que você coleciona selo?"

A resposta para todas essas perguntas, obviamente, era que eu nunca estive realmente interessada em ser igual a todo mundo. Vestir rosa sempre me pareceu meio sem graça. Não dançava durante o recreio porque não gostava de música da Xuxa, nem tinha a intenção de ser paquita. Fazia judô porque queria aprender a me virar sozinha. Colecionava selos porque achava bonito e gostava de passar horas contemplando minha coleção através de uma lente de aumento.

Para uma criança tímida, contudo, não era fácil dizer tudo isso, então eu me apoiava na Barbie, em um brinquedo que não tinha nada a ver comigo, como se o simples fato de ter uma dessas bonecas fosse suficiente para que as minhas coleguinhas notassem que, embora eu fosse diferente, continuava a ter o direito de me considerar tão menina quanto elas.

Com o tempo, notei que outras meninas também usavam a Barbie como uma espécie de certificado de feminilidade, mas que a boneca pouco ou nada tinha a ver com quem elas realmente eram ou gostariam de ser.

Sei disso porque, quando estávamos fora do ambiente escolar, brincávamos à vontade. Corríamos, pedalávamos, jogávamos videogame, desenhávamos e compartilhávamos reflexões e sonhos sem nos importarmos se a outra gostava de rosa ou preferia não dançar na hora do recreio.

Fora da escola, longe dos códigos de comportamento e convivência que havíamos internalizado para aplacar a ansiedade dos adultos com relação ao nosso desenvolvimento, ninguém precisava se esconder atrás de uma boneca: Andreia era com certeza a aluna predileta da nossa professora de ciências, Michelle era a melhor desenhista da turma e eu sempre gostei de escrever.

Não precisávamos da Barbie para nos dizer que poderíamos ser o que quiséssemos. Durante as conversas e brincadeiras que inventávamos no quintal lá de casa, já estávamos sendo exatamente quem gostaríamos de nos tornar.

Assim, peço desculpas aos fãs da boneca, pois tenho a certeza de que ela realizou sonhos e fez muita gente feliz, mas bom mesmo é poder crescer livre para brincar com o que a gente quiser.

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