Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Juliana de Albuquerque

Escritor aponta ligação entre obras de Kafka e rabino do século 18

Autor de 'A Metamorfose' e Nachman de Breslov compartilham experiência de judeus na modernidade, segundo livro

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Em "Burnt Books: Rabbi Nachman of Bratslav and Franz Kafka" (2010), o poeta e escritor norte-americano Rodger Kamenetz viaja até a cidade de Uman, na Ucrânia, em uma tentativa de refletir sobre a sua relação com o judaísmo, ao mesmo tempo que busca estabelecer uma ligação entre a obra do rabino Nachman de Breslov, místico e líder espiritual do final do século 18 e da primeira década do 19, e Franz Kafka, um dos maiores nomes da literatura do século 20.

Uman é um centro de peregrinação para milhares de seguidores do rabino Nachman que, todos os anos, viajam até a cidade durante o Ano-Novo judaico. Para que o leitor tenha uma ideia da importância desse acontecimento, basta dizer que nem mesmo a atual guerra entre a Rússia e a Ucrânia foi capaz de desencorajar os mais de 35 mil peregrinos que desembarcaram em solo ucraniano no último dia 15 com a intenção de visitar a sepultura do rabino falecido em 1810.

Judeu ultraortodoxo reza durante o Ano-Novo judaico em Uman, na Ucrânia - Vladyslav Musiienko - 16.set.23/Reuters

Kamenetz viaja para Uman levando Kafka na bagagem e explica que essa não será a primeira vez que o escritor nascido em Praga terá contato com um "rebbe", um rabino milagroso ao estilo de Nachman. Em uma passagem do seu diário, Kafka comenta que, certa vez, foi convencido pelos amigos Max Brod e Jiri Langer a visitar um "rebbe" para a terceira refeição do shabat.

Já em outra ocasião, enquanto passava férias em Marienbad, Kafka envia uma carta para Brod sobre a chegada do rabino de Belz e descreve o comportamento do religioso como uma mistura de admiração e curiosidade: "Langer tenta encontrar […] um significado mais profundo [no que diz o rabino]; acho que o significado mais profundo é que não existe significado algum e, na minha opinião, isto é suficiente".

Diante de tal demonstração de ceticismo por Kafka, como então podemos estabelecer uma relação entre ele e o rabino? Kamenetz propõe que Kafka e o rabino Nachman se aproximam tanto em razão das suas biografias quanto através de um estudo comparativo das suas contribuições literárias.

No que diz respeito às biografias, Kamenetz ressalta que tanto o rabino Nachman quanto Kafka mantiveram uma relação de conflito com figuras paternas, bem como optaram por seguir um estilo de vida pautado no asceticismo. Além disso, ambos morreram de tuberculose ainda bastante jovens, por volta dos 40 anos, e deixaram pessoas de confiança encarregadas de queimar os seus manuscritos.

Já no tocante às produções literárias, Kamenetz explica que o rabino Nachman foi autor de inúmeras parábolas, muitas das quais colecionadas por Martin Buber em seus volumes de contos hassídicos. As histórias do rabino Nachman são inovadoras do gênero e contêm uma mistura de Torá, folclore e misticismo judaico, podendo ser lidas e interpretadas de diversas maneiras, a depender da bagagem de conhecimento e da maturidade do leitor.

Outra característica marcante das parábolas do rabino Nachman é que elas se baseiam na construção de paradoxos. Kafka foi um leitor assíduo dessas breves narrativas rabínicas e, assim como Nachman, também escreveu parábolas complexas e paradoxais, inovando ao utilizar-se de elementos típicos desse gênero literário ao escrever contos e romances.

Ainda segundo Kamenetz, embora Kafka certamente tenha lido algo do rabino Nachman, não podemos dizer até que ponto a sua produção literária foi diretamente influenciada pela obra do líder religioso. No entanto, o autor também sugere que, se colocarmos alguns dos textos de Kafka ao lado dos textos do rabino Nachman, logo percebemos que, entre eles, existe uma espécie de interlocução.

O diálogo entre esses dois autores somente é possível porque ambos lidam com a experiência dos judeus europeus na modernidade. Assim, Kamenetz explica que Nachman escreve sobre os desafios impostos ao judaísmo pelo avanço do processo de secularização. Já Kafka escreve sobre as consequências desse mesmo processo para a formação e a vivência de uma identidade judaica.

O escritor Franz Kafka - Reprodução

Com isso em mente, deixo aqui a sugestão para que o leitor consulte a parábola "Uma Mensagem Imperial", de Kafka e, em seguida, examine "O Sofisticado e o Ingênuo", do rabino Nachman. Ambos os textos lidam com a transmissão de uma mensagem emitida por um rei.

No caso de Kafka, essa mensagem não chega a encontrar o seu destinatário, que, no entanto, permanece esperançoso de um dia recebê-la. No caso do rabino Nachman, a mensagem dá com os seus, mas nem todos compreendem o recado.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.