Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

O que aproxima o existencialismo do hassidismo, corrente do misticismo judaico

Antologia de 1964 tem textos de Nietzsche e Sartre e contos hassídicos, que convergem ao ressaltar autonomia do indivíduo

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Ao planejar as minhas aulas do semestre, encontrei na biblioteca do meu companheiro uma antologia já bastante antiga, "The Worlds of Existentialism" (1964), de Maurice Friedman, que, além dos recortes habituais de textos escritos por Friedrich Nietzsche, Soren Kierkegaard, Martin Heidegger e Jean-Paul Sartre, também inclui diversos contos hassídicos.

Alguns dos contos colecionados por Friedman mencionam o rabino Israel ben Eliezer, o Baal Shem Tov (1698-1760), fundador do hassidismo, corrente do misticismo judaico cuja origem remonta ao século 18. Outros têm como protagonistas os seus sucessores, a exemplo do rabino Nachman de Breslau (1772-1810).

Mulher e homem em meio a outras pessoas durante cerimônia. Prédio da praça em Pequim ao fundo
Simone de Beauvoir (esq.) e Jean-Paul Sartre em comemoração na praça Tiananmen, em Pequim, em 1955 - Wikimedia Commons/Reprodução

Como estou acostumada a não encontrar vasta referência ao pensamento judaico em muitos dos manuais de filosofia que consulto para recomendar aos estudantes, fiquei surpresa com a minha descoberta e resolvi utilizar um pouco desse material em sala de aula na tentativa de ilustrar como a preocupação com os temas relacionados à formação do indivíduo e a experiência da liberdade podem encontrar expressão em diferentes épocas e nas mais diversas culturas.

A inserção do hassidismo entre os precursores do pensamento existencialista só foi possível porque, em sua antologia, Friedman compreende o existencialismo como sendo uma tendência compartilhada entre filosofias muitas vezes discordantes entre si, cujo mínimo denominador comum seria o repúdio às doutrinas abstratas e puramente racionais em favor de um pensamento mais abrangente, capaz de dar conta do dinamismo e da concretude que caracterizam o nosso engajamento com o mundo.

Assim, segundo Friedman, embora o hassidismo não tenha imediata relevância para o entendimento da obra de um filósofo como Sartre, ele permanece importante para o nosso estudo de grandes pensadores judeus do século 20, cujas obras possuem contornos existencialistas, a exemplo de Martin Buber e Abraham Joshua Heschel.

Aqui vale a pena ressaltar que Buber é o autor de uma vasta coletânea de contos hassídicos da qual Friedman retirou os exemplos utilizados em sua antologia. Uma dessas pequenas narrativas, talvez a minha predileta, envolve o rabino Zusya de Hanipol (1718-1800): "Antes de morrer o rabino Zusya disse: ‘No mundo vindouro, não vão mais me perguntar: ‘Por que você não foi como Moisés?’. Vão me perguntar: ‘Por que não foi como Zusya?'".

Outro conto do qual também gosto bastante tem como protagonista o rabino Mendel de Kotzk (1787-1859): "Alguém comentou com o Rabbi Mendel que certa pessoa era superior a outra [...]. Rabbi Mendel então respondeu: ‘Se eu sou quem eu sou porque eu sou eu, e você é quem você é porque você é você, então eu sou eu e você é você. Mas se eu sou eu porque você é você, e você é você porque eu sou eu, então eu não sou eu nem você é você".

Mas o que isso tem a ver com o existencialismo para Friedman? Uma das principais lições que os mestres hassídicos nos transmitem é que cada indivíduo é único. Assim, uma das nossas mais importantes tarefas está na busca pelo autoconhecimento, pois somente quem conhece a si mesmo sabe identificar aquilo que realmente lhe convém e consegue distinguir por conta própria o certo do errado.

Esse último ponto está adequadamente ilustrado em uma das histórias colecionadas por Buber, na qual o Baal Shem Tov ameaça um dos seus discípulos, Yehiel Mikhal, com a perda deste mundo e do vindouro caso ele não aceite o convite de uma comunidade para ocupar o posto de rabino. Irredutível, Yehiel Mikhal protesta: "Mesmo que eu perca ambos os mundos, não aceitarei o que não me convém". Ao que o mestre responde: "Meu filho, receba a minha bênção. Você soube resistir à tentação".

Outra questão que também me chama a atenção é o papel que as narrativas ocupam na transmissão dos ensinamentos hassídicos. No século 20, alguns filósofos existencialistas encontraram na literatura uma maneira de expressar as suas ideias, inspirando os leitores a uma reflexão que os conduzia ao exercício da própria liberdade. Já no século 18, o hassidismo se utilizava de um artifício semelhante, visando à instrução através de exemplos, sem que isso comprometesse a autonomia dos seus seguidores.

Finalmente, outra preocupação que o hassidismo compartilha com o existencialismo é que devemos tentar fazer com que as coisas aconteçam aqui mesmo, neste mundo. Afinal, como teria dito o rabino Aaron de Karlin (1736-1772): "Este mundo é o mais baixo e, ainda assim, o mais elevado de todos".

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