Juliano Spyer

Antropólogo, autor de "Povo de Deus" (Geração 2020), criador do Observatório Evangélico e sócio da consultoria Nosotros

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Juliano Spyer

O milagre da multiplicação dos votos

Igrejas aliadas ao bolsonarismo perseguem fiéis e promovem o pânico, mas conseguem virar votos a favor do presidente

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"Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto." O pastor assembleiano Nilson Gomes está sentindo na pele a experiência do protagonista da história mais famosa de Franz Kafka, que acorda e descobre que se tornou uma barata.

A metamorfose de Nilson aconteceu no início do mês, quando uma conta em rede social chamada Supremo Concílio das Assembleias de Deus do Brasil publicou trechos descontextualizados de uma entrevista que ele concedeu.

Nilson foi acusado falsamente de ser "petista infiltrado" e de receber dinheiro do partido. "De forma covarde, me arrancaram do púlpito cancelando as minhas agendas, sem me dar sequer o direito de me defender", ele reclama em um vídeo recente.

Ele também ficou sem renda porque é pregador itinerante e igrejas não querem mais convidá-lo para pregar. "Com base em que?", ele questiona. "Em uma página… que vive de produzir e divulgar fake news."

O presidente Jair Bolsonaro (PL) e Tarcísio de Freitas (Republicanos), candidato ao governo de São Paulo, na Igreja Mundial do Poder de Deus - Ronny Santos - 23.out.2022/Folhapress

Nilson se tornou conhecido por criticar o envolvimento das igrejas com o bolsonarismo. Em uma pregação de 2017 que viralizou, ele diz: "Eu não posso e não vou me calar diante de uma igreja que transforma a frase diabólica ‘bandido bom é bandido morto’ em frase sagrada... Na boca de Jesus se ouviu: ‘hoje estarás comigo no Paraíso.’ [Foi isso que Jesus] falou para o ladrão."

O testemunho de Nilson é poderoso porque ele não é nem progressista nem de esquerda. Ele afirma que nunca votou no PT, se identifica como conservador do ponto de vista dos costumes, concorda que a igreja evangélica deve participar da política, mas se incomoda com o sequestro de igrejas pelo bolsonarismo.

Igrejas pentecostais e neopentecostais com milhares ou milhões de fiéis, que hoje fazem campanha por Bolsonaro, apostaram suas fichas no presidente e, para tentar vencer, seus líderes desacreditam e calam vozes como a de Nilson e aumentam a pressão psicológica sobre fiéis que não se posicionaram.

Para a antropóloga Jacqueline Teixeira, da UnB, mulheres evangélicas que optaram por Simone Tebet no primeiro turno estão sendo constrangidas a mudar seu voto. "Elas estão se decidindo pelo Bolsonaro por consequência do pânico espiritual," explica Jacqueline. "É esse o efeito provocado pela circulação de vídeos com lideranças chorando, orando, dizendo que votar em Lula coloca em risco o projeto do Reino de Deus. Isso representa um peso gigantesco sobre essas pessoas. Acaba sendo mais fácil votar em Bolsonaro do que ser acusado de ‘falso cristão’."

Entre esses vídeos que promovem o pânico, Jacqueline destacou três que circularam muito na semana passada: a postagem do pastor André Valadão sugerindo que ele estava sendo perseguido pelo PT, a oração da influenciadora Bella Falconi com Bolsonaro, e a fala da primeira -dama dizendo para evangélicas: "não olhem para o meu marido, olhem para mim que sou serva do senhor". Esse conteúdo circula em grupos de WhatsApp das igrejas, muitos deles vigiados por evangélicos bolsonaristas para filtrar as críticas ao presidente.

Independente de quem vença a eleição, o fortalecimento do evangelicalismo hegemônico, que combate a diversidade de posicionamento político nas igrejas, cristalizou percepções negativas sobre a esquerda.

Esta semana uma nordestina preta, pobre e pentecostal me contou como ela definiu em quem votará. "Lula pode ter proposta para a família, aumentar salários, reduzir impostos e pagar R$ 1.500 pelo Bolsa Família. Mas Lula não gosta de crente e tá na cara que a equipe do PT também não gosta," ela afirma, se referindo às divergências em relação a valores morais. "Talvez eles não nos persigam, mas eles não gostam da gente. Bolsonaro não é crente, mas a mulher dele é uma crente comprometida, e ele é simpatizante do Evangelho."

Quem, nas esquerdas, desembaraçará esse nó até 2024? E como?

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